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Há diferenças significativas entre os massacres de Suzano e Nova Zelândia e nós não somos responsáveis por eles. No entanto, há pelo menos um ambiente comum e devemos ficar atentos, porque de alguma forma contribuímos com ele. Prometo que vou explicar. No caso de Suzano, o terrorista cometeu um ato de revolta contra si mesmo que se consolidou como ato de destruição dos outros. No segundo, estamos diante de alguém que quis coroar seu profundo e perverso amor próprio a ponto de transforma isso em convite para uma grande guerra política-espiritual.

O terrorista de Suzano se odeia e transfere todo ódio de si ao mundo que o criou. Reza o catecismo: “odiai ao próximo como a ti mesmo”. Primeiro destruir um membro de sua família; em seguida, os colegas da escola. Na cabeça dele, família e escola representam a sua falência como ser humano. Seu raciocínio é de um suicida e não o de um psicopata frio e calculista. Ele não quer sobreviver para contemplar o resultado de sua obra; quer naufragar o mundo inteiro em sua própria desgraçada. Para ele, seu ato inverte o ato criador de Deus, pois é o ódio que destrói no sentido inverso do amor de Deus criador.

Já o terrorista da Nova Zelândia tem perfil mental diferente. Trata-se da exortação para guerra, convocando seus iguais para salvar o mundo da grande catástrofe. Portanto, é ato de urgência. Ele evoca “a grande substituição” e não a destruição pela destruição. Os culpados de sua infelicidade são historicamente circunstanciais. Ele não odeia a si; na verdade, ele ama excessivamente a si mesmo e pretende proteger o mundo que o criou custe o que custar e usando de todos os meios necessários. Esta é a razão de exibir o massacre ao vivo nas redes sociais, com frieza calculada: convidar seguidores para uma guerra política de natureza espiritual contra aquilo que considera o maligno. Tem orgulho de sua obra a ponto de perverter o Amor misericordioso de Deus.

De qualquer maneira e independentemente de suas diferenças, esses dois atentados chamaram atenção para um problema que será desafiador: a banalidade do mal na era das redes sociais. Não acho que o mal seja um problema das redes sociais em si, já que o mal é um problema universal. Contudo, penso que o ambiente das redes contribui — como contribui para muitas outras coisas boas — para tornar o mal ainda mais banal. Dado a sua estrutura funcional e dinâmica, as redes se tornam um perfeito condutor de rivalidades.

Um dos problemas é que a banalidade se alimenta justamente da sua excessiva reprodução. O ápice da banalização do mal consiste em apagar todas sutilezas entre certo e errado, público e privado, individual e coletivo, virtude e vício, amor e ódio… Nas redes, as relações se transformam única e exclusivamente na disputa do tipo “amigo-inimigo”, sem mediações.

Confesso a minha incapacidade de lidar com o problema. Também sou refém da lógica das redes sociais e reconheço, de imediato, os meus vícios. Ultimamente minha estratégia pessoal tem sido a seguinte: luto interiormente para não apontar o dedo ao primeiro bode-expiatório que me aparece; as mãos são ligeiras para declarar um apoteótico: “a culpa é dele” — de preferência, claro, a culpa será sempre dos meus adversários ideológicos. Se sou capitalista, a culpa é do socialista; se sou de direita, a culpa é da esquerda; se sou pró-arma, a culpa é do pacifismo; se sou nacionalista, a culpa é do globalismo; e por aí vai. Esse tipo de rivalidade é realmente contagioso.

A tendência apressada (parte do processo de banalização) será sempre a de responsabilizar tudo aquilo que nós, imediatamente, abominamos. E aqui os dois atos terroristas diferenciados acima se encontram: “a culpa nunca é minha” — esse tipo de pureza é fatal. Como cultivo a mais alta expectativa com relação a mim mesmo, nutro nobres sentimentos de estima por tudo o que acredito, a culpa só poderá ser mesmo é do meu inimigo. Um ente que quanto mais anônimo e abstrato melhor para eu culpar.

É tudo mais ou menos nesta chave: encontrar os responsáveis da minha infelicidade. As discussões em redes sociais têm uma forma que potencializa a inimizade, e nesse ambiente vale tudo para marcar adversários. A experiência mais virtuosa é de humilhação constante de qualquer interlocutor que possui a “marca” do inimigo. É senso de honra desconfigurado, já que todos perdem o nome. Nada como transformar quem nos desafia em adversário invejoso e ressentido.

Os massacres de Suzano e Nova Zelândia aconteceram num intervalo de praticamente uma semana. Desestabilizam nosso senso de tranquilidade civilizatória. Poxa, é tão bom xingar os outros nas redes, ofender alguém enchendo o saco, mandar à merda o primeiro que vem desafiar o conteúdo de um belo texto que acabamos de publicar com a maior das boas intenções; até que de repente você se depara com alguém que eleva o orgulho, a honra, o senso de rivalidade, o ódio e a vingança às últimas consequências.

Caro leitor, com isso não estou dizendo que xingar nas redes nos torna corresponsáveis pelos massacres de Suzano e Nova Zelândia. Minha única preocupação é que, na maioria das vezes, acho que nem percebemos o quanto contribuímos para tornar o mal ainda mais banal e o mundo um lugar ainda pior.

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