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Já fui a favor da pena de morte. Quatro razões me convenceram a mudar de ideia. Duas mundanas, uma metafísica e a última teológica. A possibilidade de erros em processos judiciais por si só já seria um problema. Depois vem o excessivo poder dado ao Estado — aliás, um poder quase teológico. Por que o Estado, além de deter o monopólio da violência, pode deter a decisão sobre a vida dos outros? Por fim, a dúvida metafísica diante da morte. A dúvida metafísica é, para mim, um problema sério. Ah, um detalhe: se não gostam da palavra metafísica, substituam por “filosófica”. Ninguém sabe o que significa morrer, e essa ignorância me apavora. Sou covarde. Podem falar o que quiser sobre a morte que não falarão nada com segurança. A morte torna tudo nebuloso. É puro horror.

Para refletir sobre a pena de morte como sistema punitivo contra o criminoso e aquele que ameaça a segurança da polis, recorro-me ao filósofo Sócrates ao chamar atenção do tribunal que o condenou à morte lá na idílica Grécia Antiga. No encerramento do processo, magistralmente escrito por Platão no livro Apologia de Sócrates, suas últimas palavras foram: “É a hora de irmos: eu para a morte, vocês para a vida; quem terá a melhor sorte? Só deus sabe”. A expressão “Só deus sabe”, neste contexto, significa o reconhecimento sincero do limite de todo conhecimento humano. Sócrates fez do autoexame da própria consciência a espinha dorsal de toda vida. Sua vida dedicada à filosofia é a expressão máxima do que entendo aqui por “dúvida metafísica”.

A morte é musa da filosofia, diria Sócrates. No diálogo Fedon, de Platão, que narra não a condenação, mas o momento da execução penal de Sócrates — tomando cicuta —, o tema central é a imortalidade da alma. Independentemente do que se possa afirmar com segurança racional sobre a imortalidade da alma, o fato é que tudo muda se a vida acaba com a morte. Até o velho Kant, que pôs fim às pretensões do conhecimento metafísico, abriu espaço para a imortalidade da alma. Como saber? Com um honesto salto de fé. É um argumento pragmático moral, eu reconheço. Mas considero esse tipo de humildade uma grande virtude. Entre “tudo acaba” com a morte ou “tudo começa”, fico no meio termo: fico com a dúvida. Vai saber, não é mesmo?

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Considero a pena capital a pedra de tropeço — o escândalo — de todos os sistemas punitivos vingativos, principalmente depois da morte do Cristo na cruz. Agora vou dar algumas das minhas razões teológicas para ser contra a pena de morte. Convido o leitor ateu, mais sensível a esse tipo de conversa, a dispor de toda a caridade hermenêutica. Entre a dúvida metafísica e o abismo niilista, aposto no Cristo. Como lembra Rene Girard, a pena de morte de Cristo é o bode expiatório que escancara a condição do domínio de Satanás no mundo. No entanto, Jesus morre na cruz para cumprir o desígnio de Deus como Amor. Desígnio cósmico, diga-se de passagem. Trata-se do Alfa e do Ômega, do Princípio e do Fim — Deus Caritas Est.

Na cruz, Deus carrega para si todo o pecado do mundo a fim de, paradoxalmente, tirar o pecado do mundo. Noutras palavras: esvaziar o domínio do mal do mundo. E olha que Satanás até que tentou desafiar Jesus com pão, poder e glória. Quem não desejaria saciar a fome do faminto e curar a dor do sofredor se tivesse poder para isso? Seu amigo comunista, talvez. O preço seria a idolatria. Mas que problema há nisso? Não é Deus o trapaceiro e o sádico ao criar o mundo e permitir tanta dor, fome e violência? O que escolheríamos diante do seguinte dilema: servir a Deus ou reinar no mundo para construir o mundo um lugar melhor? Viva la revolución! O problema é que Jesus optou pela cruz e demonstrou que nem só de pão, poder e vingança vive o homem e… Deus.

Nas palavras de Bento XVI referindo-se à crucificação de Jesus: “Jesus cumpriu até o fundo o ato de consagração, a entrega sacerdotal de Si mesmo e do mundo a Deus. Assim, nessa palavra, resplandece o grande mistério da cruz. Cumpriu-se a nova liturgia cósmica. Em lugar de todos os outros atos culturais, entra a cruz de Jesus como a única verdadeira glorificação de Deus, na qual Deus Se glorifica a Si mesmo por meio d’Aquele em quem Ele nos dá o seu amor e assim nos atrai rumo às alturas para Si […]. Na cruz, Ele carrega o pecado do mundo e ‘tira-o fora’”. Depois da Cruz, por que a pena de morte? Por que atribuir ao Estado essa decisão? Para melhor reinar no mundo…

Há três possibilidades diante da pena de morte: a) o criminoso não se arrepende e vai para uma condição pior (eufemismo para inferno); b) o criminoso se arrepende e vai para uma condição melhor; e, por fim, c) a comunidade não está nem aí com a alma do criminoso, a única coisa que deseja é que ele fique para sempre longe da sociedade. Na pena de morte, mandar o criminoso para o desconhecido tem um significado pragmático: expulsar o criminoso da sociedade a fim de que a justiça seja reparada. A alma dele não é problema de ninguém, muito menos do Estado que assumiu para si a prerrogativa de garantir segurança, saúde, transporte e educação. O único problema é o Estado, com dinheiro do contribuinte, continuar financiando criminosos.

Estou longe de pensar que o defensor da pena capital seja um troglodita desajuizado. Há quem consiga primorosamente defender com elegância as maiores atrocidades humanas para combater outras tantas outras atrocidades. Considero a pena de morte resquício de estupidez que nunca fecha o ciclo de violência. E na idolatria do Estado é que não vai fechar mesmo. Para o cristão, qual a finalidade de Jesus ter derramado seu sangue na Cruz? Pobre homem, Deus dos fracos. Bom mesmo é o Estado, forte e soberano. Na dúvida, vou com Francisco: “A Igreja ensina, à luz do Evangelho, que a pena de morte é inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e a dignidade da pessoa… hoje está cada vez mais viva a consciência de que a dignidade da pessoa não se perde nem sequer depois de ter cometido crimes muito graves”.

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