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O aluno deve gravar as aulas do professor que usa a sala de aula para fazer proselitismo ideológico? Minha resposta é não. Como dispenso o fanatismo autoritário que bota ponto final em toda discussão, gostaria de dar algumas razões da minha resposta. Primeiro deixa eu me apresentar. Muito prazer, sou Francisco, tenho 20 anos de experiência profissional em sala de aula. Já trabalhei em escola pública e privada, faculdade e cursinho pré-vestibular. Periferia, área rural e urbana. Dei aula para crianças, adolescentes e adultos. Como disse em texto recente sobre o fim do MEC: esse é o meu “lugar de fala”.

Ainda que fosse um sacrossanto direito do aluno garantido pela mais perfeita constituição de uma belíssima e grandiosa nação, defendo que, mesmo assim, o aluno não deveria gravar aulas caso estivesse se sentido ameaçado pelo tenebroso professor doutrinador. Abro parênteses: considere que estou fazendo uma distinção delicada entre “direito” e “dever”, “ordem jurídica” e “ordem moral”; e a partir dessa distinção defendendo o caráter moral da coisa e não o penal ou o jurídico, pois acho muito mais importante pensar que o juiz do conhecimento é a virtude da coragem e a busca da verdade do que o poder da intimidação burocrático-legal — mesmo que custe a belíssima e grandiosa segurança do país. Fecho parênteses.

No final de semana, Jair Bolsonaro postou no seu perfil do Twitter um vídeo que uma aluna de cursinho pré-vestibular gravou. No vídeo, aparece essa aluna discutindo com sua professora de gramática. Segundo a aluna, a professora gastava muito tempo da aula criticando o governo e fazendo proselitismo ideológico. A aluna ameaçou levar o caso para coordenação, mas antes preferiu jogar o material para a torcida, que repercutiu a ponto de até o presidente apoiar. Bolsonaro escreveu no post que divulga o vídeo: “professor tem que ensinar e não doutrinar”. Parece que a moça é ligada ao PSL, partido político do presidente. Não sei. E, sinceramente, também não me interessa.

O núcleo do debate é o seguinte: por que alunos não devem gravar aulas? Primeiro porque a finalidade desse tipo de gravação não é pedagógica, mas política. O aluno não está gravando para “poder estudar depois”. Para esta finalidade, deve pedir autorização para o professor ou para a escola. No caso em questão, o aluno está sendo estimulado a gravar com a intenção de, por meio da ameaça, intimidar o professor e ter material para perseguir inimigos políticos, principalmente inimigos do bolsonarismo. Em outras palavras: trata-se de uma disputa de poder e não de amor ao conhecimento.

Como o espaço público das redes sociais é politicamente amorfo, sem mediações institucionais adequadas, sem as instâncias legítimas de julgamento, fica evidente o objetivo de tentar inibir o professor por meio da humilhação pública e do linchamento virtual. O tribunal revolucionário conservador está instaurado para condenar infratores políticos, os novos inimigos da nação. A exposição pública de supostos infratores, possibilitada pelos algoritmos das redes, tem se tornado o último refúgio dos covardes. “Mas é professor esquerdistas, tem de ser calado mesmo” — Enfim, há sempre uma nobre desculpa, e dessa vez chancelada pelo próprio chefe do Estado da grande nação.

Gostaria de destacar e defender que a relação professor-aluno não pode ser confundida com um ato político, uma disputa de poder. A sala de aula não é uma instituição política, portanto não cabe ao chefe do Estado determinar suas regras. Escolas devem ter autonomia, e quem avalia e julga se o professor está ultrapassando seus limites pedagógicos-institucionais é a comunidade escolar e não “o povo” e o governo.

Deve-se considerar a relação professor-aluno como um ato pedagógico determinado pela busca de conhecimento. Transformar isso em ato político é corroborar com sua destruição. Professor e aluno ocupam o espaço pedagógico, que é o espaço da liberdade por excelência, e não um campo de batalha, uma arena para disputar o poder. Quando presumem que estão num campo de batalha vivendo um conflito político, professor e aluno rompem aquele que deveria ser o pilar de toda relação de aprendizado: a confiança, que deve animar toda busca sincera pelo conhecimento e pela verdade.

Contudo poderíamos questionar: quando um professor se aproveita da sala de aula para pregar suas doutrinas ideológicas, suas crenças político-partidárias, ele também não estaria rompendo este vínculo de confiança do espaço de aprendizado? Não estaria transformando o espaço da liberdade em um campo de batalha política? Maculando a cátedra em palanque? Portanto, nesse sentido, o professor não estaria se aproveitando de sua autoridade diante de um público cativo? A princípio essas perguntas parecem legitimar o ato político de gravar as aulas, pois é um sistema de defesa e não de ataque. Ora, se o professor rompe o vínculo de confiança do espaço pedagógico, deve ser denunciado. Simples assim. Ponto final.

Ao contrário do que o ambiente virtual das redes faz parecer, a sala de aula é um ambiente vivo de pessoas reais que se unem em comunidade em busca de conhecimento. A ideia presumida por aqueles que defendem o direito de alunos gravarem aulas de professores predadores é a de que alunos são vítimas incapazes de se defender dentro desse espaço supostamente sigiloso. Perguntam: “o que se passa ali que as aulas não podem ser gravadas?”, “os professores estão com medo de quê?”

Quem pergunta essas coisas entende que a base da relação institucional escolar é o conflito pelo poder e não a amizade em torno do conhecimento, que o professor é o predador e o aluno é a presa dócil num cativeiro. Além disso, presume que só o professor detém a palavra final do conhecimento e o aluno deve sempre ouvir caladinho. A imagem catastrófica não reflete a vida de uma escola. Para quem vive um ambiente escolar real, em vez de filmar seus professores com o objetivo de intimidá-los, os alunos devem ser estimulados a enfrentá-los academicamente. Se ele acha que um professor está cometendo um erro, que diga, ali mesmo, no espaço da sala de aula, que o professor está errado. E, por favor, dê razões.

A sala de aula não é uma prisão e o professor, um carrasco. Professor não é uma autoridade de poder, mas detém apenas uma frágil autoridade de cátedra, que pode e deve ser sempre questionada por qualquer aluno. Se o aluno tem vergonha, algum receio de exposição, converse com amigos, procure falar com o professor depois da aula. Não quer ficar sozinho com o professor, chame um grupo de amigos para discutir o tópico. Questione. E se o professor for, de fato, um carrasco e fizer qualquer tipo de ameaça, em último caso, procure a coordenadora. Deve-se reconhecer que a relação professor-aluno não é uma ilha isolada na escola e que toda instituição escolar serve a um único propósito: protege o espaço sagrado da liberdade.

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