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A chacina na escola de Suzano chocou o Brasil. Quer dizer, chocou parte do Brasil. Quem pega a notícia dos assassinatos em série e sai imediatamente explicando tudo sem saber de nada, ou saca sem piscar o seu proselitismo de porta de tragédia, pode estar tudo – menos chocado.

Afora a avalanche demagógica contra e a favor de armas – um dos itens preferidos do famoso fetiche direita x esquerda –, numa espécie de arrastão panfletário sobre os corpos das vítimas, aparecem também os fiscais de postura. Ficam ali, como críticos de cinema, analisando e patrulhando a reação alheia ao evento monstruoso.

Nesse tipo de patrulha, destacam-se os humanistas de plantão que advogam o embargo das imagens do ataque. Num mundo com cobertura digital 24 horas, onde qualquer bate-boca de vizinhos na calçada chega em segundos às telas da cidade inteira, esses missionários da paz imaginária ainda conseguem propor que a mídia tradicional “preserve” o público de um fato violento. Aí realmente ninguém vai ver a atrocidade – mas desde que, como medida adicional, sejam confiscados os telefones e os computadores da população inteira.

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Você pode imaginar as grandes redes de TV se recusando a mostrar o fuzilamento coletivo na boate Bataclan, no atentado de 2015 em Paris, que em poucas horas o mundo inteiro já tinha se fartado de ver na internet. Seria uma grande medida contra a violência, segundo esses astronautas da bondade, e apenas mais um ato do pacifismo cenográfico, segundo qualquer mortal que tenha os pés na Terra.

Aliás, uma medida de emergência tomada no Brasil por essa impressionante falange dos “inchocáveis”, após o massacre de Paris, foi desautorizar qualquer mortal a se chocar com um dos maiores atentados terroristas da história se não se indignasse, prioritariamente, com o desastre da barragem de Mariana – que ocorrera simultaneamente. Os fiscais do sofrimento ensinam os pobres ordinários a hierarquizar a dor – com a técnica prodigiosa que só possuem os que têm o dom de não sentir nada.

Essa hierarquização da dor alheia serve, claro, apenas para uma selfie de justiceiro social, mas isso é o tipo da coisa que na hora do sufoco ninguém nota.

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Os mesmos personagens que patrulharam as reações ao ataque de Paris fingindo defender as vítimas nacionais de Mariana deixaram, naturalmente, Mariana para trás – e agora também já viraram a página de Brumadinho (Mariana 2), talvez se esquecendo de mandar embargar a imagem da onda gigante de lama engolindo centenas de pessoas. A calculadora de drama deve ter aferido que aquele nível estava ok. Houve até uma campanha publicitária usando modelos cobertas de lama em poses sensuais – num fenômeno só um pouco mais sórdido dessa escalada de prostituição da solidariedade, que progride vertiginosamente a cada nova tragédia.

Esses corregedores do altruísmo universal chegaram a avisar por aí que filmar o Fabio Assunção bêbado equivalia a filmar o helicóptero do Boechat pegando fogo sem fazer nada para ajudar. Veja do que é capaz um coração bem anestesiado. Sai do forno a lição de moral que você quiser, em cima do lance, por mais atrozes que sejam as imagens fumegando na sua cara, sem censura.

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Caiu um avião na Etiópia? Surgem imediatamente explicadores do horror pedindo para você dar um like e tocar o sininho nos vídeos deles, que são “bem legais”. E isso é, de novo, em cima do lance – sem corpos identificados, muito menos enterrados. Mas tem também vídeo de simulação do acidente, com encenação da gritaria desesperada à bordo e tudo – e atenção: vídeo visto por centenas de milhares de pessoas sem qualquer sinal de repúdio ou mesmo reprovação.

Você tem alguma dúvida de que esse mundo está doente?

O massacre de Suzano é, evidentemente, uma explosão de narcisismos frustrados que não estão muito distantes desses outros narcisismos acima mencionados – saciados com futilidades fantasiadas de grandeza, ou seja, com extrato de pó de… nada.

Mesmo assim, não advoguem o embargo das cenas de falso humanismo explícito. Esse mundo precisa se olhar no espelho impiedosamente, nem que seja para desistir de si mesmo.

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