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Dom Quixote
Dom Quixote| Foto:

A crise do mercado livreiro tem alguns culpados e muitos cúmplices.

Evandro Martins Fontes, sócio da editora e livraria Martins Fontes, resume a encrenca apelando ao pecado capital: “Foi ganância”. O negócio do livro é pequeno; no Brasil, minúsculo. Não são apenas os livros que perdem leitores e compradores, mas também os jornais impressos e as revistas semanais.

As grandes redes, Saraiva e Cultura, apelaram à ideia de que livro é produto como qualquer outro, que poderia ser vendido em shopping centers e mega stores, bastando que estivesse misturado, quase que disfarçado, entre as mais variadas bugigangas tecnológicas, e fosse oferecido por vendedores com a sensibilidade de drones, num ambiente climatizado como necrotério.

Deu no que está dando.

Outros fatores precisam ser levados em consideração. Nesta entrevista de Francisco Razzo com Dionisius Amendola, o problema é esmiuçado com cuidado, em especial quanto aos aspectos mais amplos da comércio, dos quais Amendola entende, dada a sua experiência.

As inovações tecnológicas bagunçam o coreto de qualquer mercado e abalam a estabilidade de qualquer império. A indústria fonográfica foi ferida de morte, com o advento da Internet. Hoje é barato produzir, divulgar, distribuir e vender música. Ninguém mais precisa dos Barões da Indústria, assim em maiúscula, para nos ensinar a ouvir porcarias. Agora gravamos, divulgamos, vendemos e ouvimos porcarias sem interferência do Grande Capital.

Se aconteceu com a música e está acontecendo com o cinema, teria de acontecer com o livro. Não estou levando em consideração o livro digital, em sua versão mais conhecida como ebook Kindle, nesse desmanche do comércio de livros. Até porque, e concordo novamente com o Evandro Martins Fontes, o que está em perigo não é propriamente o livro, mas seu entorno. O ecossistema livreiro e editorial.

Mais do que o ebook, o que chacoalha o mercado é a própria Amazon e sua capacidade financeira e logística de vender livros cada vez mais baratos e entrega-los cada vez mais rapidamente ao comprador. Se vou encontrar, em shopping centers, lojas grandes e assépticas, por que não comprar os livros por meio da Internet? Pois é, prefiro. E, antes de mais, que fique claro: todos os dias dou graças a Deus pela existência de Jeff Bezos, e dou graças a Jeff Bezos pela existência da Amazon.

Insisto num ponto: o livro é produto, mas não é produto qualquer. É um pseudo produto. Seu apelo é menor do que outros objetos de cultura e entretenimento; por consequência, é preciso dedicação e amor para ser vendido. Uma das possibilidades é aproximar todos – escritores, editores, livreiros, leitores – o máximo possível.  Torna-lo familiar e convidativo. O livro não pode ser visto como bicho esquisito, fetiche acadêmico ou ameaça infantil.

Também me parece arriscado apostar nos “mais vendidos”, nos livros puramente comerciais. Sim, eles existem, têm seu público. No entanto, o público fiel ao livro é o público que não se importa com o livro dito comercial. Este, o leitor ocasional de livros, pode alavancar as vendas de algum título, mas a longo prazo tratará o livro como sabão em pó. Já o leitor de livros “não comerciais” será fiel aos livros na alta e na baixa.

Há esperança? Se houver, estou certo de que ela passa por livrarias e editoras menores, livreiros e vendedores que gostem de livros, leitores que continuem a ler, escritores que gostem de apresentar seus livros aos leitores. Não sei o quanto a melhora no sistema educacional e o crescimento econômico influenciam no hábito da leitura e no comércio do livro; em alguma medida, devem influenciar. Crianças incentivadas a ler e apresentadas aos livros tendem a cultivar o interesse depois de adultos. Mas há questões sutis que não podem ser deixadas de lado. O ensaísta Paulo Raviere lembra que não adianta nada incentivar a leitura, se a leitura for obrigatoriamente aquela do cânone escolar, muitas vezes composto de livros chatos, ruins ou desinteressantes:

Nas escolas, a leitura é desvinculada da vida: martela-se por anos a importância de certos nomes e da leitura como um todo, mas não seu interesse. O foco está em nomes próprios, títulos, sinopses, cronologias, contextos, escolas literárias, gêneros, generalizações e sentenças deslocadas que haverão de substituir obras inteiras. Há pouco conteúdo específico, pouca legibilidade e liberdade, muita homogeneização. O problema não é a leitura programática, estudada, objetiva, mas ensinar esse método como o único possível. Assim, Memórias Póstumas de Brás Cubas pode ser lido porque vai cair numa prova, mas raramente o será por alguém bem deitado, sem prazos ou objetivos bem definidos, que preferiu ignorar o celular por alguns minutos.

 

O problema, imagino que esteja claro, não é Memórias Póstumas de Brás Cubas, obra divertidíssima e genial; mas a obrigatoriedade escolar, o sentido quase que de punição, dessas leituras. Já li Memórias… pelo menos quatro vezes. Se me dizem que tenho de lê-lo uma quinta vez, para fazer prova, prefiro Agatha Christie. (Que, aliás, é ótima mesmo.) Livro se parece com comida: tem de ensinar a criança a comer tudo, apresentar a comida, arrumar o prato, tornar a refeição atraente, mas se ela não gostar de jeito nenhum de determinado alimento, força-la a comer provocará repulsa e, a longo prazo, distúrbio alimentar.

Clubes ajudam; redes sociais dedicadas a isso, também. Se o aluno quer ler Edgar Alan Poe ou Stephen King – ou ainda, hoje em dia, Neil Gaiman, Raphael Montes, Santiago Nazarian –, dê a ele esses livros; são bons e podem substituir A Moreninha ou Iracema. Considerações à parte, é preciso admitir que há algo de milagroso, pouco quantificável e quase inapreensível, nesse encantamento que é abrir um volume e se emocionar ao ler que En um lugar de la Mancha, de cuyo nombre no quiero acordarme, no ha mucho tiempo que vivía un hidalgo

 

 

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