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O escritor francês Jean Genet1948 © estate brassai rmn grand palais cliche © Herve Lewandowski
O escritor francês Jean Genet1948 © estate brassai rmn grand palais cliche © Herve Lewandowski| Foto:

Eu tenho um babado pra te contar, boneca; mas você também pode ler, se quiser, amapô. Até tu, amapoa de canudo, aproveitará a leitura, e o bofe senta aí sem gongar antes da hora. Fino. Talvez não seja um arraso, nem quero causar saia justa entre os ocós-de-bem que ainda não saíram do armário, tudo cu preso, mas faço o que posso, às vezes faço nena, eu sei, escrevo horrores, suo bajé, às pencas, de segunda a quarta, de sábado também, e a Gazeta que me desculpe, mas não me venha fazer a Kátia não: quero mais acué! quero muito acué! Vamos ver se melhora isso daí pro ano que vem, porque não é fácil nem barato frequentar o banheirón.

Banheirón à parte, a prova do ENEM gerou comoção – ou, no dialeto, drama. Em casos assim, quase sempre há excessos. Moralismo de um lado, tribalismo de outro, o de costume: uns acreditam que o mundo está prestes a acabar, por causa da sexualidade alheia e seus códigos; outros pretendem reinaugurar o mundo, como se tudo o que fizemos de Adão e Eva até hoje não passasse duma pré-estreia.

Entre uma coisa e outra, os alunos foram surpreendidos com o “idioma” pajubá, num texto de fazer Guimarães Rosa escritor dos mais convencionais, redação nota 10 da Fuvest, só para perguntar ao desavisado aspirante ao ensino pouco superior, no máximo melhorzinho, qual das características do pajubá o faria ser considerado dialeto e elemento de patrimônio linguístico. É tanta preliminar antes da pegação acadêmica que dá vontade mesmo é de desaquendar.

Concordo que o idioma pajubá não é melhor ou pior que o idioma geral que ainda chamam, com alguma condescendência, de língua portuguesa, pelo menos aquele falado entre políticos e professores, médicos e jornalistas, advogados e instrutores de coaching. O nível anda baixo, a coisa anda feia, as soluções andam poucas e o Brasil anda que nem curupira. Também tô bege com a situação. Mas o segredo é não haver segredo: leitura, leitura em voz alta, ditado, memorização, tabuada, cálculo mental, lógica.

Repetição, repetição, repetição. Essa técnica desenvolvida desde que o homem precisou medir os terrenos e os grãos, os escravos e os anjos, ainda funciona divinamente. Nada contra a tecnologia, os computadores, a Internet, os videogames, os jogos de aprendizagem e algumas das tantas inovações, mas o básico da pedagogia – lápis, borracha, papel e palmatória – continua a servir muito bem, obrigado. O resto é equê.

Sobretudo, importa lembrar que o propósito da educação é elevar o aluno até ela, e não a rebaixar à ignorância do aluno. Provas, concursos e vestibulares exigem cada vez menos análise sintática e conhecimento gramatical, e cada vez mais interpretações de texto, laxas e bobas, bem como reflexões ou palpites sobre códigos restritos a determinadas tribos: rappers, adolescentes, militantes em geral. Isso é ruim, me desculpem a antipatia.

Nada tenho contra os variados falares e respectivos falantes. Nada tenho contra porque, sinceramente, não me dizem respeito e não me ferem a existência, ergo, não serei resistência. Que se inventem idiomas privados, ou compartilhados por poucas pessoas, não é problema. Eu mesmo falo sozinho de um jeito que só eu entendo. O problema é que o ensino deve oferecer ao aluno o oposto disso: o idioma da cultura, o idioma erudito, o que há de mais – e não de menos – abrangente, comum a um máximo possível de pessoas e às realizações civilizacionais. O pajubá é o pontinho dentro do pontinho enfiado no pontinho perdido num pontinho no meio de trilhões de outros pontinhos.

É claro que dizer isso não é de bom-tom. Esse mundo pós-moderno é um mundo fragmentado, líquido, pós-ético, pós-tudo, em que os códigos individuais ou tribais tomam conta do cenário e, aos poucos, inviabilizam a comunicação. Repito: que esses códigos existam e sejam usados entre os grupos está tudo bem. Outras linguagens são usadas por outras confrarias: de profissionais, de religiosos, de esportistas. O que não serve para muita coisa é pretender expandir esse vocabulário para quem dele não faz uso, nem precisa, talvez não queira.

O impulso à cultura tem de ser de amplitude, de largueza de vistas, de maior inteligibilidade, e não o contrário. Escritores, filósofos e artistas não falaram para si mesmos, para meia dúzia, mas para todos. Mesmo os cientistas e matemáticos com seu vocabulário mais rarefeito: é um idioma muito específico, mas aberto a quem por ele se interesse. Uma boneca, um bofe, uma biba, uma amapô com ou sem canudo podem aprender a língua da ciência.

À educação cabe proporcionar essa ascensão do espírito humano ao que há de universal e comum, de sofisticado e fértil. Leio Jean Genet por causa da universalidade de sua prosa poética, e não pela especificidade do seu jargão ou de suas experiências. O que se espera da educação é que nos cure da idiotia, nos arranque do provincianismo, nos faça deixar a tribo em direção à sociedade, a aldeia em direção ao mundo. Não quero fazer a maldita, mas elucubrações sobre o idioma dos ativistas da ideologia de gênero, para além da moralidade envolvida e das controvérsias mais ou menos óbvias, revelam um problema de fundo: quem pode o mais, pode o menos. A recíproca não é verdadeira.

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