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Quando até o peru é racista
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Meu peru é racista.

Comprei um peru de Natal da Perdigão. Comprei um, ganhei outro. Ao menos foi o que me disseram: o peru que eu comprei se transformou em dois perus, num verdadeiro milagre. A empresa quer incentivar o espírito natalino ao dar um peru a mais, na compra de cada peru. Com esse peru sobressalente, eles presenteiam alguém que não tem peru; de preferência, uma família mais humilde que a sua.

A Perdigão fez a sua parte: cada um com seu peru.

No comércio, entretanto, não vale a regra evangélica da caridade feita em anonimato, e a mão esquerda tem de saber o que faz a mão direita e vice-versa. Noutras palavras: a propaganda é a alma do negócio.

Porém, os tempos não estão para peixes, nem para perus, nem para propagandas, nem para boas intenções.

Na campanha publicitária, veiculada em tevê e internet, uma família compra um peru e presenteia outra família com o peru. Tudo certo? Tudo errado.

Pois a família que compra o peru parece ser composta por gente branca; a família que ganha o peru parece ser composta por gente negra. Isso bastou para que as redes sociais explodissem, indignadas, e apontassem racismo explícito, implícito, estrutural e desestruturante no comércio de perus.

Firmei a vista e acredito ter notado algumas coisas.

Primeiro: na família que ganha o peru, de gente negra, há um garoto branquelo que, presumo, deve ser o namorado de alguma garota ali.

Segundo: na família que dá o peru, de gente branca, há uma moça negra que, presumo, deve ser namorada de algum garoto ali.

Terceiro: a família negra só é negra no sentido americano do termo. Para os brasileiros, é família parda, mulata, com um mais negro que o outro, outro mais claro que o um, e as variações de costume. Nos EUA, país multirracial de características muito diferentes das nossas, basta uma gota de sangue negro para que você seja um negro irrefutável. No Brasil, também multirracial, é preciso uma piscina olímpica de sangue negro para que se reconheça como negro de fato.

Isso tem mudado, porque importamos as categorias racialistas de julgamento (e de histeria) dos nossos irmãos americanos. Aliás, como de costume, rejeitamos o que os EUA inventam de bom: liberdade, mercado, mérito, respeito à Constituição; aceitamos o que os EUA inventam de ruim: racismo, politicamente correto, aborto, militância radical.

No Twitter eu li, juro que li, gente reagindo à campanha da Perdigão com os singelos dizeres: “Queria metralhar todos os que demonstram racismo”. Me joguei no chão, imediatamente, como nos recomendam nos filmes. Tiro nunca acerta o chão, nem por decreto. A maneira mais eficaz de acabar com o racismo é metralhando os racistas.

Falando em li, a cantora Negra Li disse que Elvis Presley não morreu. Minto: disse que ele morreu sim, mas antes de morrer tomou lugar dos outros cantores, todos negros. Eu queria entender: um cantor canta a própria música e, ao fazer isso, toma o lugar dos outros?

É isso.

É isso porque ele era branco com voz de negro e gingado idem. Suas cordas vocais se apropriaram do timbre comum aos negros e o resultado não podia ser mais evidente: um monte de cantores negros ficou desempregado por causa do Elvis.

Então me ocorre que seria impossível agradar a todos.

Para começar, porque há o chamado “racismo estrutural”. Ninguém escapa dele: ou você é racista, ou sofre racismo, porque é estrutural. Permeia as relações sociais, contamina a linguagem, invade as piadas, mete-se na ceia de Natal, tempera o peru, estica e afrouxa as cordas vocais. Tudo é racismo, até o que parece não ser racismo.

Como não há movimentos racistas muito explícitos no Brasil, e negro se casa com branca, que tem filho mulato, que se casará com japonesa e terá filho moreno de olho puxado, e assim por diante, o que temos – sofremos e praticamos – é esse racismo aí, estrutural.

Esse tipo de racismo é sutil, etéreo, implícito, suave, invisível, cuidadoso. É um racismo tão rarefeito, tão delicado, tão malicioso, tão com luvas de pelica, que eu quase tenho vontade de sofrer racismo. No dia a dia, sou tratado com mais falta de respeito. Quando não gostam de mim, falam na minha cara, sem muita cerimônia. O racismo estrutural não é assim, mas existe. Existe e existirá para sempre, podem apostar.

Voltando ao peru, se a família rica fosse a negra, que presenteasse a branca, diriam que isso distorce o que de fato acontece no Brasil, e perpetua o “mito da democracia racial”. Quando você diz que negros têm condições de viver como brancos, é o que respondem para você: “Isso aí é conversinha de branco que quer mudar de assunto e fingir que racismo não existe”. Então, uma família negra não poderia representar os ricos, na propaganda, porque seria mentira.

Se fosse uma família branca a presentear outra família branca, apontariam o óbvio: no Brasil, as elites querem esconder o negro debaixo do tapete, querem branquear a população. Sempre tem mais branco que negro em qualquer coisa.

Se fosse uma família negra a presentear outra família negra, seria entendido como um ato de detestável condescendência, como se o Brasil fosse, sim, esse paraíso em que negros compram perus, vendem perus, presenteiam perus, só fazem isso na vida. Mentira, mentira, mentira.

E, convenhamos, que absurdo foi esse de representar uma família ao redor da mesa? Todo mundo sabe ou deveria saber que esse modelo de família é mentiroso, falido, opressor, careta, cínico, reacionário. Família de verdade, hoje em dia, é bem diferente. Para começo de conversa, nem existe. E aquele garoto branco naquela família negra, e aquela garota negra na família branca? Garotos e garotas são construções sociais, sabemos muito bem disso.

A solução, me parece, é que a Perdigão suspenda a propaganda, acabe com a promoção e, se calhar, aumente o preço dos perus para que ninguém compre peru nenhum. Até porque peru de Natal lembra Natal, e Natal lembra moral judaico-cristã, Ocidente, colonialismo, escravidão de negros e vocês entenderam no que isso vai dar.

Acho melhor guardar o peru, para que ninguém desconfie que tenho um peru; que, pior, tenho dois perus, e pretendia que me levassem um deles; ou, pior ainda, que o peru não é peru, é Chester.

Mas daí eu perderia a piada.

 

 

 

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