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Céu e água (1938), xilogravura, 43,4 x 43,3 Divulgação / M. C. Escher Foundation-Baarn-Netherlands
Céu e água (1938), xilogravura, 43,4 x 43,3 Divulgação / M. C. Escher Foundation-Baarn-Netherlands| Foto:

A notícia é velha, o problema é novo e, pelo jeito, veio para ficar: semanas atrás, uma repórter de futebol foi abusada ao vivo e em cores durante transmissão do jogo entre Corinthians e Vasco, pelo Campeonato Brasileiro. O autor do crime foi seu colega de equipe. Um escândalo.

O único problema com esse escândalo é que não aconteceu. Vários outros ângulos de câmera mostraram o que o primeiro ângulo já tinha mostrado suficientemente bem: o assistente enrolava um fio de microfone muito próximo da moça, e esse movimento das mãos sugeriu, a duzentos milhões de míopes, que ele cometia algum tipo de crime sexual.

Não houve rigorosamente nada, mas antes que o nada se confirmasse como rigorosamente nada, as bem-intencionadas pessoas que habitam as redes sociais cada vez menos sociáveis trepidaram de indignação e senso de justiça; daí para o justiçamento é, teria sido, um pulo. Os outros ângulos, o esclarecimento do acusado e o esclarecimento da suposta vítima salvaram a pele – e a carreira – do profissional. É tanta gente preocupada com o bem-estar do próximo que chega a emocionar.

Voltemos mais um pouco, às eleições presidenciais: como se presidir o Brasil já não fosse desgraça o bastante, Jair Bolsonaro é esfaqueado ao vivo e em cores durante campanha. O autor do crime foi identificado e preso. Um escândalo.

O único problema com esse escândalo é que aconteceu, mas muita gente não acreditou no que viu. Vários outros ângulos de câmera mostraram o que o primeiro ângulo já tinha mostrado suficientemente bem: o presidente acena para seus eleitores em meio à multidão, quando de repente sofre o golpe, que poderia ter sido fatal.

Tanto os que viram o que não havia para ver, no caso da repórter, quanto os que negaram o que viram, no caso do candidato, sofrem de algum tipo de doença ainda não devidamente catalogada na literatura médica. A imagem, que já valeu mais do que mil palavras, hoje não vale o pixel que come. O que vale é afirmar ou negar fatos e notícias que não acontecem ou que acontecem diante de nossos olhos, programados para ver o que esperam ver e não ver o que não querem ver.

Mais do que nunca, num mundo cercado de câmeras, fotografias, ângulos e informações, a reação das pessoas é de incredulidade absoluta, ou de credulidade bovina. Isso não impede que, tomadas de fúria ética, queiram demonstrar o que sentem sobre o que veem, ouvem e leem, antes mesmo de ver, ouvir e ler.

O comportamento é teatral e mimético. Representa-se a indignação, pouco importando a indignação genuína. As emoções, cada vez mais intempestivas e exageradas, cobrem de escamas os olhos e projetam sobre os objetos qualidades que eles não têm. O cérebro se recusa a crer no que vê, quando vê, ou a deixar de crer no que não vê, quando queria ter visto.

O problema das notícias falsas é que todos estão dispostos a acreditar nelas, com o fervor dos mártires.

A repórter que não sofreu o abuso de que era defendida teve de se esforçar para convencer a populaça que não sofrera o abuso; o presidente, à época candidato, foi acusado de simular sua quase-morte e sua aparência cadavérica, noves fora a bolsa de colostomia, as cicatrizes, as fotos etc.

Assim, nessa era em que o mundo não é mais que “vontade e representação”, para lembrar do clássico de Schopenhauer, o comportamento ético se transforma na odiosa sinalização de virtude, e as relações sociais se transmutam numa atitude farsesca e mesmo satírica, como se fôssemos personagens à procura de autor. A realidade que se vire para provar que existe, pois entre os fatos e os memes, pior para os fatos.

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