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Edgar Allan Poe
Edgar Allan Poe| Foto:

A leitura de romances e contos policiais e de mistério talvez seja o pecado mais praticado e menos assumido entre escritores e leitores “cultos”. Nem todos – na verdade, poucos – admitem o que muitos – na verdade, quase todos – sabem: que a literatura de mistério, de detetive ou policial é não apenas divertida, mas também muito mais interessante do que boa parte do que se publica e se anuncia como “alta literatura”.

Desde que estruturalistas anunciaram a morte do autor e o autismo da linguagem, num jogo metalinguístico destinado a ocupar professores universitários e a distribuir cargos acadêmicos, o que temos como literatura séria pode se tornar, com frequência, uma espécie muito particular de sofrimento.

A origem da pulp fiction não poderia ser mais nobre: Edgar Allan Poe era homem de gênio e com Os crimes da Rua Morgue estabeleceu as premissas do que viria a caracterizar o gênero, ao menos em seus traços mais gerais: uma vítima, que quase nunca importa em si mesma, a não ser como pretexto; um crime, evento suficientemente intrigante, perpetrado por um criminoso que será descoberto; um detetive, que se destaca, nos casos mais clássicos, por sua inteligência e sensibilidade; noutros, como no romance noir, por sua experiência no submundo, sua força física, seu caráter (quase sempre ambíguo).

Um parêntese: para P. D. James, ela própria autora notável do gênero, a literatura policial começa ainda antes, com as histórias de horror gótico do século XVIII. A despeito da reputação que ela tem e eu não tenho, acredito que Os crimes da Rua Morgue tenha sido o marco – e o modelo – do que viríamos a entender depois como histórias de detetive, e as novelas e contos que se escreviam até então tinham elementos e traços que só se definiriam mais adiante. Poe “criou seus precursores”, como disse Borges a respeito de Kafka, em famoso ensaio.

Embora tenha se tornado um gênero à parte – e nas prateleiras das grandes livrarias e no catálogo das grandes editoras exista uma categoria: literatura policial –, defendo que a literatura policial é literatura, ponto. E mais literatura do que muito da literatura tout court, que promete investigar os grandes temas de nosso tempo, a desconstrução de nosso ego ou a angústia e precariedade das nossas relações sociais.

Não bastassem as virtudes estéticas, a literatura policial pode proporcionar ainda uma coisa a mais: o antídoto de certa bibliografia sociológica, daquela sociologia do crime, que politiza, justifica, desculpa todos os atos humanos como se fossem praticados por autômatos ou títeres das condições sociais, econômicas ou educacionais.

O comissário Maigret sabe que um homicídio pode ser cometido pelo mais banal, fortuito, torpe ou irrelevante dos motivos; o padre Brown desconfia que todos somos criminosos à espera de ocasião, ou Graça; Sherlock Holmes nunca se interessou por crimes vulgares, cometidos por criminosos vulgares, por motivos vulgares. Ele sempre soube daquilo que sociólogos não sabem: muitos crimes são excepcionais e merecem esse elogio. Nero Wolfe, do seu gabinete, não precisa de muito contato humano para saber o quanto o criminoso é humano, demasiado humano.

Mas sociólogos, ordinariamente sem imaginação, acreditam piamente que crimes são acontecimentos sem causa, sem autor, sem efeitos, sem vítimas: apenas curvas estatísticas a depender de políticas sociais, taxas de crescimento econômico inversamente proporcionais a taxas de crescimento demográfico. Eu trocaria departamentos inteiros de sociologia, bibliotecas inteiras de departamentos inteiros de sociologia, pelas obras completas de Agatha Christie, porque sei que Hercule Poirot é mais perspicaz – e tem muito mais bom senso – que Slavoj Žižek.

Enquanto houver algum desejo por verdade, alguma aspiração para que a vida não se reduza a intermináveis discussões psicanalíticas ou semiológicas, haverá livros policiais e haverá quem os leia com interesse. A morte, o poder e o medo contam em livros assim; e a morte, o poder e o medo contam muito na própria vida. Os homens e seus pecados sempre vão de um lado a outro, sem cessar, à procura de redenção ou de justificativa. Livros não precisam ser enfadonhos, cerebrais, frios. Livros podem sim ter crimes, criminosos, culpas, diálogos, investigação, clímax, revelação. “Creio que uma forma de felicidade é a leitura”, disse Jorge Luis Borges, ele próprio leitor e autor de inesquecíveis contos de mistério. Se Borges disse, está bem dito.

 

 

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