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Arte: Robson Vilalba/Thapcom
Arte: Robson Vilalba/Thapcom| Foto:

Muitas vezes, caminhando pelas ruas de São Paulo ou do Rio – embora no Rio a sensação seja mais forte, mais presente, mais autêntica –, pergunto a mim próprio o que impede os pobres e miseráveis de descerem sobre a cidade rica para saquearem tudo o que encontram. “A polícia”, disse-me um amigo paulistano. Depois pensou melhor e acrescentou: “A religião”.

Aceito qualquer uma delas. Porque nenhuma me satisfaz. Com o meu olhar de estrangeiro, pressinto que a sociedade brasileira, nos seus extremos de riqueza e pobreza, assenta numa espécie de “fé”. Não em sentido religioso, entenda-se; em sentido prosaico, como algo em que se acredita sem haver uma evidência para tal.

Os mais ricos acreditam que a favela nunca vai devorar a cidade. E a favela acredita que a cidade não pode ser devorada. Essa espécie de stasis faz lembrar aqueles desenhos animados em que o personagem continua a correr sem haver chão por baixo. Quando ele para e olha para o abismo, a queda acontece.

Esse meu amigo, incrédulo, acha que isso é conversa de comunista. Não é. É conversa de conservador. Para amarmos o nosso país, é preciso que o nosso país seja amável, dizia Edmund Burke (cito de memória). Alguém consegue dormir tranquilo deitado numa cama de dinamite?

Encontrei essa reflexão em romance que aconselho: Feast Days, de Ian MacKenzie. Anos atrás, escrevendo na Folha de S.Paulo sobre Heliópolis, de James Scudamore, já tinha notado que os melhores romances sobre São Paulo são escritos por estrangeiros. Ian MacKenzie só confirma a minha intuição.

No centro da história encontramos um casal americano que viaja de Nova York para a capital paulista. Ele, analista financeiro, trabalhando com afinco e indiferente ao cenário. A mulher, Emma, tem aquilo que o marido não tem: tempo. Para contemplar as vistas.

Algumas das suas observações sobre a realidade paulistana são óbvias para qualquer estrangeiro. Em São Paulo, tudo é justaposição: há favelas e condomínios; assaltos à mão armada e concertos de ópera; o maior número de consumidores de crack e o maior número de cachorrinhos de companhia. Sem falar das relações pessoais – ou, para usar as palavras da narradora, a “promiscuidade da palavra ‘amigo’”: cinco minutos de conversa com um desconhecido e há logo beijos, abraços, uma orgia de proximidade física.

O romance vale pela descrição desse cotidiano paradoxal, intenso, alucinante. A cidade que ostenta os melhores restaurantes da América Latina e que transformou a gastronomia numa forma de religião, com seus sacerdotes e fiéis, não esconde os resquícios de macumbas que ficaram nas calçadas – velas queimadas, cruzes de madeira, flores murchas – como testemunhos de misérias privadas.

Mas o romance é mais do que reportagem, é mais do que antropologia. Ele trata de uma crise – ou, mais exatamente, de duas crises. A primeira é a crise de Emma, que continuamente viaja até ao passado para comparar as esperanças conjugais que tinha com a realidade agora vivida. Uma realidade feita de silêncios, infidelidades e angústias, sobretudo quando o tema é a relutância de Emma em experimentar a maternidade.

Essa crise familiar é amplificada pela crise do Brasil. O ano é 2013. A sociedade saiu às ruas para protestar contra o famoso aumento nas tarifas dos transportes públicos. Mas os 20 centavos são apenas um pretexto para uma revolta mais profunda: os brasileiros querem mudança, qualquer mudança. Tal como Emma, estão cansados com o statu quo vigente. Eles marcham contra a corrupção, os sonhos adiados, o fracasso econômico, os partidos tradicionais.

Emma marcha ao lado deles, como se fosse um deles. Mas não sabemos se o faz para afastar o seu ennui doméstico ou por genuína empatia com a agenda dos rebeldes. Ian MacKenzie é primoroso ao retratar essa confluência entre uma vida em crise e um país em crise.

Mas lendo o romance hoje, e sabendo que o autor viveu no Brasil nos anos recentes, as páginas mais admiráveis são a descrição dessa revolução anônima, crescente, imparável, como a lava de um vulcão que avança com uma força destruidora. Emma já não estará no país para testemunhar as consequências dessa erupção. Nas páginas finais, encontramo-la em Lisboa – ironicamente, a cidade para onde parecem confluir novamente muitos brasileiros. Superficialmente, Emma parece reconciliada. É a primeira vez que a alma da protagonista está em clara dissonância com a alma de um Brasil em carne viva.

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