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Da esquerda para a direita: George Washington, Thomas Jefferson, Theodore Roosevelt e Abraham Lincoln
Da esquerda para a direita: George Washington, Thomas Jefferson, Theodore Roosevelt e Abraham Lincoln| Foto:

Num dia de 1776, Thomas Jefferson molhou a pena no tinteiro e começou a frase:

“É evidente por si mesmo que todos os homens foram criados iguais e dotados por seu criador com certos direitos inalienáveis, entre os quais o da vida, liberdade e busca da felicidade”.

Até aquele momento a ideia da igualdade entre todos os seres humanos e a sacralidade da origem divina para ela circulava apenas entre filósofos iluministas. Era algo metafísico e abstrato, considerado geralmente no debate intelectual como especulação teológica sem fundamento.

Por isso mesmo a tentativa de associar esta origem com o universo do Direito recebia críticas constantes. Desde as origens da humanidade a realidade da dominação pela força era a única considerada natural, uma vez que observada em praticamente qualquer espécie de sociedade conhecida. A escravidão existia por todo lado, de modo que um direito inato e inalienável à liberdade era visto por jurisconsultos como uma aberração.

A frase de Jefferson mudava radicalmente este ambiente. Ela abria a Declaração de Independência dos Estados Unidos. Estava sendo escrita com a função se servir de alicerce fundamental para regrar uma sociedade, seu sistema político e sua relação com o mundo. Deveria ser um guia para a ação, e uma ação transformadora.

No entanto, o coração do homem que fazia correr a pena iria trazer o primeiro questionamento ao sentido da frase. Quem preenchia o papel era proprietário de uma centena e meia de escravos, tinha entre seus negócios a compra e venda de seres criados livres. De seu plantel fazia parte a mucama Sally Hennings, filha de seu padrasto com uma escrava. Os dois tinham oito filhos, também escravos.

O fato de escrever a frase e se tornar dirigente da nação que começou a ser erigida em torno dela não alterou em nada as relações entre as ideias que a cabeça cultivava a partir de sua famosa biblioteca (considerada uma das melhores da jovem nação) e os atos que praticava de todo o coração.

Dois séculos e meio depois da frase, o mundo se tornou tão acostumado com a associação entre direito à liberdade com direito de todos os seres humanos à liberdade que o comportamento de Thomas Jefferson parece muito contraditório.

Mas na época nem mesmo os mais radicais iluministas eram capazes de pensar com tal identidade. Até mesmo Rousseau, o maior defensor da igualdade, sabia perfeitamente que a transformação dos princípios iluministas em prática real não poderia se fazer por decreto. Como dizia, uma lei seria incapaz de alterar diretamente algo que se enraizava também nos costumes – como definia, “a lei que se grava no coração”.

Entre o que a Razão que preside a pena pode produzir e o costume, o hábito arraigado, a luta é sempre muito desigual. Mudar de ideia não apenas é possível como relativamente fácil: não há qualquer punição, e todo oportunista sabe disso. Já mudar um hábito qualquer, seja o modo de preparar o café ou o apertar do travesseiro, é quase uma impossibilidade: médicos dão receitas, pacientes resistem a elas.

As acomodações possíveis entre a recomendação da norma racional e o caso particular de costumes são quase infinitas. Inclusive as intelectuais. Nas bibliotecas de outros sábios da época poderiam ser encontrados dezenas de tratados muito recentes para justificar a dissociação entre norma e costume.

O avanço considerado mais radical acontecido no modo de pensar o Homem nas ciências naturais havia sido a publicação do “Systema Naturae” de Carlos Lineu, publicado em 1735. Trazia as chaves de classificação e as regras de nomenclatura para todos os seres vivos que são empregadas até hoje – um dos mais longevos e frutíferos trabalhos intelectuais de um único cientista.

Também ali estava definida a espécie Homo sapiens. Não como um todo, mas como um conjunto de quatro variedades: o americano, o asiático, o africano e o europeu. Todas separadas com características consideradas naturais: cor da pele, estatura, comportamentos. Ainda no século 18 os tipos foram batizados como “raças humanas”, termo cunhado pelo francês Conde de Buffon.

Outro passo foi dado logo em seguida na Alemanha, onde um debate universitário sobre o assunto acabou gerando uma valoração estética e uma hierarquia. Johamm Blumebach definiu a raça branca como “caucasiana” e propôs que ela fosse o padrão de beleza e evolução para a humanidade.

A disseminação deste tipo de pensamento nos Estados Unidos pode ser notada já na escolha das classificações de enquadramento dos moradores no censo de 1800. Ali havia duas categorias: “caucasianos” e “outros”.

Essa espécie de dicotomia entre a norma racional universal e a valoração estética particular presidia não apenas a distância entre o pensar e o sentir de Jefferson, como também acabou se espelhando em sua própria atividade política no país que estava construindo. Ao longo da primeira década foi o principal legislador da Virgínia (e também governador).

Seus códigos ficaram conhecidos por razões inversas. Na legislação civil introduziram a plena liberdade religiosa, a difusão da educação, o apoio ao ensino universitário. O código criminal abolia castigos (ele os julgava bárbaros) e a pena de morte. Mas ambos só valiam para caucasianos.

Quando precisou legislar para escravos, julgou mais prudente pensar na a segurança do Estado e tornar ainda mais draconianas as determinações da antiga legislação colonial. Seu projeto incluía determinações como a de proibir que negros livres se tornassem cidadãos da Virgínia. Caso um escravo fosse alforriado, deveria deixar o território em menos de um ano, sob pena de “ficar fora da proteção das leis”. Negros livres de outros estados só poderiam permanecer no território por 24 horas (a medida valia inclusive para marinheiros de navios vindos de fora). Mulheres caucasianas que tivessem filhos com homens de outras raças seriam banidas da Virgínia – e os filhos seriam tomados pelo Estado e obrigados a trabalhos forçados.

Paul Finkelman, seu biógrafo, resumiu a raiz das distinções:

“Por toda a vida Jefferson acreditou que a igualdade política para os negros seria impossível, pois as diferenças substantivas entre as raças iriam para muito além de cor e outros atributos físicos. A raça, mais que o estatuto de escravos, condenaria os negros a uma desigualdade permanente. Nas ‘Notas sobre o Estado da Virgínia’ Jefferson afirmou que a violência não impediu que os escravos romanos se destacassem na ciência, nas artes e na literatura porque ‘eram de raça branca’. Estava convencido de que os escravos norte-americanos não conseguiriam tal distinção porque não eram brancos. Argumentava que os índios ‘tinham um germe em suas mentes, ao qual faltava apenas mais cultivação’; eles seriam capazes ‘da mais sublime oratória’. Mas dizia que nunca encontrara um negro que ‘fosse além da narrativa linear’. Por isso concluía que a capacidade de empregar a razão dos negros ‘era muito inferior à dos brancos’.”

Os vários enquadramentos mostram o imenso grau de latitude que havia então para ir enquadrando o “direito inalienável de todo homem à liberdade” como se fosse apenas aplicável a uma parcela de homens caucasianos – ficando as relações com os demais humanos puramente para o terreno dos costumes e das legislações destinadas aos inferiores.

Nem mesmo a passagem pela França, que já abolira há muito a escravidão na metrópole; nem mesmo a revolução francesa, que assistiu de perto – e nem mesmo o exercício da presidência dos Estados Unidos – trouxeram qualquer dúvida a Thomas Jefferson a respeito da inferioridade dos negros. O máximo que se permitiu foi libertar seus próprios filhos criados como escravos.

Já outro grande Pai da Pátria norte-americano viveu trajetória diversa. George Washington foi escolhido para comandar o exército na luta pela independência. Assim que chegou ao acampamento onde as tropas estavam reunidas, seu primeiro ato foi o de cancelar o recrutamento de soldados negros (mesmo livres) pois temia que eles pudessem depois reivindicar o estatuto de cidadãos. Como disse seu biógrafo Paul Hirshfeld, “não estava preparado para fazer tais concessões a uma raça que considerava inferior”.

Do ponto de vista racional, ele partia dos mesmos conceitos de seu colega da Virgínia. Mas o comando da guerra o levou a tomar decisões imperiosas. Precisava desesperadamente de soldados, de modo que achou mais prudente alistar negros prometendo alforria e cidadania que perder batalhas para as tropas inglesas. À medida que ia lançando negros em combate passava a receber relatos de coragem, bravura, inteligência e patriotismo.

Ao fim dos combates o general vitorioso tornou-se o primeiro presidente dos Estados Unidos. No cargo, foi obrigado a se render ao costume e aplicar a lei racional da igualdade e dos direitos inalienáveis com dois pesos e duas medidas completamente diferentes – de acordo com a raça do freguês.

Mas seu coração havia sido tocado. Quando partiu para a guerra era senhor de 400 escravos em sua propriedade de Mont Vermon. Quando voltou, havia tomado a decisão interior de jamais vender qualquer um deles. Procurou tratá-los com humanidade enquanto foi vivo. Alforriou todos os que ainda estavam lá em seu testamento.

Era um começo na grande obra de criar uma coincidência entre o princípio geral da liberdade, uma ideia então minoritária e mal vista, com uma prática social capaz de dar substância ao princípio. No ponto de partida, o universo racional era mínimo; já aquele dos costumes extenso e totalmente dominante. A dominância do costume sobre a norma valia mesmo entre intelectuais, então muito capazes de criar tanto normas racionais aplicáveis ao homo sapiens quanto distinções valorativas para dividi-los segundo critérios subjetivos.

Mesmo nos dias atuais ainda se encontram vivos os elementos do dilema inicial. A racionalidade humana vitoriosa pode ser encontrada em instituições como o voto universal ou os direitos dos cidadãos, todos livres. Mas o gentílico “American” ainda é substantivo pleno apenas para caucasianos. “Latin Americans”, “Afro Americans” ou “Asian Americans” são termos correntes para gravar certos valores do século 18 nos corações atuais. Muita luta correu e corre em torno destas categorias essenciais – que vão permitir entender as idealizações do passado.

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