José Carlos Fernandes

A excitante CWB

José Carlos Fernandes
24/03/2019 21:00
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No início dos anos 2000, o jornalista Ruy Castro integrou um petit comité de autores convidados a escrever sobre as cidades mais desejáveis do planeta. A proposta – andar na contramão do turismo convencional. Em vez de elogios às areias escaldantes, mares verdejantes e coqueiros ao vento, a tarefa era explorar a alma de lugares, o que inclui seus pecados e demais conteúdos indicados para viajantes com maioridade emocional.
Do empenho nasceu Carnaval no fogo: crônica de uma cidade excitante demais, obra que faz jus ao título. Quinze anos depois do lançamento, permanece pelando na mão de quem o abre. Logo no prólogo, Ruy conta um ocorrido que traduz o que é o Rio. Em 2003, traficantes ameaçaram cancelar o carnaval. Alguns comerciantes baixaram as portas. Ruas quase vazias. Mas nada que metesse medo numa veterana de nome Tereza, empregada do jornalista Millôr Fernandes e porta-bandeira do bloco “Vem ni mim que sou facinha”.
Ao vê-la entregue à folia, seguida por seus pares, donos de loja e moradores abdicaram do direito universal ao cagaço. Que se danassem os desmancha-prazeres. Janelas foram abertas e a cidade teve um de seus carnavais mais gloriosos, com um milhão de pessoas atrás de 200 blocos, acotovelando-se debaixo de 40 graus à sombra. O recado era claro – um golden shower cívico: o Rio é um lugar que bandidos armados até os dentes ameaçam acabar com a alegria povo. Mas é também o lugar em que existe uma passista chamada Tereza, que lhes manda uma banana.
A sacada de Carnaval no fogo vale para tantos lugares. Vale para Curitiba, a cidade das duas estações – o inverno e a rodoferroviária –, terra estranha onde uma reles ida à padaria pode ser arruinada por frentes frias, chuvas torrenciais e noite antecipada às cinco da tarde. Aqui a temperatura não cai – se suicida. A friagem chega sem pedir licença, catapultando qualquer um à farmácia mais próxima. E farmácia é o que não falta por aqui, município cuja população ostenta o maior índice per capita de renites alérgicas do planeta. Londrinense tem pé vermelho. Curitibano tem nariz vermelho.
Dá uma trabalheira dos diabos defender que a capital paranaense é – se não “excitante demais”, pelo menos “excitante o suficiente”. A culpa não é da cidade em si – já que não está de todo fora da categoria cidades sexy, termo criado pelo pesquisador Néstor García Canclini (antes que me queimem vivo, trata-se de um conceito relacionado à oferta de lazer, cultura e cota mínima de néon). A responsabilidade é dos moradores, membros voluntários da confraria da Boca Maldita, cujo título é autoexplicativo. A gente adora falar mal e, pelo exercício contínuo, nos tornamos os maiorais nesse ramo de atividade.
Por algum motivo que foge às sociologias, às antropologias e o jornalismo em geral, uma das diversões dos habitantes dos pinheirais é esculhambar a terra onde nasceram. Se dois ou mais emputecidos estiverem reunidos, qualquer bobagem vira guerra. Ou existe outro lugar em que a distância de 5 minutos entre um biarticulado e outro é motivo de reclamação? Tem explicação. Os curitibanos – intimidados pelos casacos, que usam em camadas, desfeitas inúmeras vezes ao dia, assim que os termômetros decidem brincar de gangorra – são mais reservados e exigentes do que a média nacional. Qualquer um de nós seria mais flexível se mudasse para a Praia do Francês, em Maceió, ou para a linda Florianópolis. Por essas, pesa sobre nós a fama de antipáticos, o que considero uma solene injustiça. Um bullying com quem sofre timidez crônica, moléstia que bem poderia ser catalogada como mal-de-curitiba.
Queria só ver se o humor dos cearenses (com folga, os mais mais simpáticos do país) resistiria a dois cachecóis e um par de luvas perdidos por semana. Ou ao ouvir a trágica previsão do tempo de cada dia, ainda que na voz maviosa de Ana Carolina Olesky. A propósito, a pouca pachorra com o frio é um fato – mas também uma grossa contradição. Em mais de uma pesquisa sobre os curitibanos – nenhuma muito confiável, é verdade – o clima polar aparece como a maior qualidade da cidade. Oi? De modo que reclamar é regra, mas a possibilidade de viver em qualquer lugar com bafo quente está fora de cogitação, pelas próximas encarnações, inclusive.
Já ouvi “de tudo” da turma que foi embora de Curitiba e voltou, rabinho entre as pernas. Moravam em lugares ensolarados e com praia, cercados de amigos que lhes permitia circular em outras dependências da casa que não a sala. Mas não suportavam a ausência, vejam só, da estação-tubo e dos invernicos que nos assaltam e fazem de bobo. Das festas de aniversário que duram 60 minutos e das quais todo mundo sai com um tuperware. Entre os descontentes, alguns reclamaram saudades dos Faróis do Saber. Ou alegaram o Parque Barigui ser superior a Porto de Galinhas ou Paraty. Tem de tudo nesses manifestos. Duvida? Me manda um inbox para eu “caguetar” os pecadores.
E querem saber? A coisa já foi pior. Quem se der ao trabalho de folhear os jornais da década de 1960 – Gazeta do Povo, Diário do Paraná, O Estado do Paraná ou a versão regional do sensacional Última Hora – vai se deparar com toda sorte de xingamentos contra a cidade, como se aqui fosse a última parada do Trem do Inferno. A Praça do Japão era chamada de “crateras da Lua”, a Marechal Deodoro de “ruínas de Pompeia”. Até o sovaco dos choferes de praça incomodava os editorialistas, que usavam da baixa popularidade do desodorante Vaness junto à categoria como desculpa para metralhar a capital. E justificar por que diabos tão pouca gente de fora parecia gostar daqui. Não explicaram para os visitantes que o termo “forasteiro” era um elogio, puta falha.
O trocadilho entre Curitiba e Bundiritiba andava nas bocas, assim como uma piadinha de salão: “o significado da palavra ‘Curitiba’ ninguém sabe. O que se sabe é que em tupi-guarani ‘ritiba’ quer dizer ‘do mundo’”. A blague é atribuída a Millôr Fernandes. É velha, mas ainda funciona. Experimente. Falar mal de RITIBA se tornou esporte nacional – cujo ápice foi o hilário texto “Curitiba, a fria”, do pernambucano Fernando Pessoa Ferreira, publicado em 1967 numa coletânea organizada por um gênio da raça, Paulo Francis. Devia ser leitura obrigatória nas escolas, porque é muito bom.
Os anos de Ivo Arzua à frente da prefeitura – no final daquela década – e a entrada do jovem arquiteto Jaime Lerner na política, mudaram tudo. Súbito a capital saiu da zona de rebaixamento, galgando novos títulos, já que o de sorridente não colou. A prática do city marketing encontrou seu laboratório perfeito e “a cidade sem mar” passou a ser desejada, graças a um rosário de motivos que nem é preciso repetir. Vale lembrar a síntese perfeita do cartunista Dante Mendonça – “Curitiba, melhores defeitos, piores qualidades”.
É, sim, excitante lembrar que aqui árabes e judeus dividiam o mesmo espaço da Praça Tiradentes. Que nossos alemães são um barato – vide Henrique Paulo Schmidlin, o Vitamina. Que uma das nossas escritoras mais longevas, a Liamir Hauer, 96, fala palavrão e dança em cima do salto. Que geramos pencas de poetas, escritores, atores, artistas plásticos, cineastas músicos populares e eruditos da melhor qualidade. Mesmo que boa parte deles seja formada por catarinenses, dane-se, vieram para cá e por aqui ficaram. São nossos.
No mais, quem não deu artista ou montanhista, deu urbanista, engenheiro de trânsito e diletante do patrimônio histórico. Curitibano adora dar palpite para a Urbs e o Ippuc. Ama o passado, o que faz dessa circunscrição com folga, a pátria dos brechós, sebos e bares retrôs que imitam os armazéns de secos & molhados. Nós bem que merecíamos um deLorean para rever, hoje mesmo, a passagem do dirigível Hindenburg, em 1936. Curtir boleros na Boate Marrocos, em 1959. Ou beber com o Leminski no Bar Cometa, na XV, depois de comprar livros na velha Ghignone, num dia qualquer de 1975, antes de a neve cair.
Tudo isso carrega um pouco de exagero e mentira, mas é improvável que o imaginário das cidades tenha alguma base científica. É sempre uma zona. Verdade é que mesmo sem vizinhos que nos convidem e apesar dos surtos de babaquice que queimam o nosso filme em rede nacional, a cidade se salva pela cultura. Permitam parafrasear o Ruy Castro – Curitiba é um lugar onde professores apanharam de forma covarde na frente do Palácio Iguaçu, onde o ônibus tem tarifas imorais, onde os negros não ganharam um portal. Mas é também o lugar onde os poetas parecem brotar do chão, debaixo da luz prateada que nos ilumina. Temos calçadas tortas, mas largas. Diz algo sobre nós. Misteriosa CWB. Um abraço pro Dalton Trevisan. Coração para a Letícia Sabatella. Selinho na Karol Conka.
P.S. Fiz um teste por duas semanas: dei um sonoro “bom dia” para todos com os quais cruzei na Água Verde. Cerca de 60% responderam; outros 15% mexeram os lábios, o que denota estarem num estágio pré-civilizatório. Nós é que nos incomodamos em demasia com os demais 25% que… não ouvem bem. Quanto a não cumprimentar no elevador, curitibano tá certo – isso lá é lugar de puxar conversa?