José Carlos Fernandes

A vida é uma Kombi

José Carlos Fernandes
05/05/2019 20:00
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Ilustração: Felipe Lima

The Flash daria conta de assistir a tudo o que a gente recebe pelas redes sociais, whatsapp e demais diabruras. É o bicho. Mas dias desses, a pesquisadora Araci Asinelli da Luz, da UFPR, me pegou de jeito com um vídeo publicitário. Caí no choro. Enviei para 40 pessoas – 20 de cada vez, como impõe o aplicativo – e me deliciei com as respostas, tão emocionadas quanto. Não estava sozinho na pieguice. O mundo é um moinho.
Do que se trata? De um comercial de despedida da Kombi, uma quase sessentona que deu adeus em 2013, depois de ter marcado a biografia de milhões de pessoas ao redor do planeta. Araci enviou a peça em alusão a sua aposentadoria na universidade, como um recado saber sair de cena. “Se você vive neste planeta, a gente deve ter se cruzado por aí”, diz a voz da idosa que faz as vezes da “perua” no reclame. Usa um tom quase tão maroto quanto a idosa que faz o papel de “dona” Luxúria no impagável A casa dos Budas Ditosos, de João Ubaldo Ribeiro. Faço a comparação porque achei o reclame sexy, só isso. “Que curvas… Sou rodada”, diz a Kombi. Que delícia.
Em tempo, tá lá nas wikis – Kombi é diminutivo ou apelido derivado do alemão Kombinationsfahrzeug, algo como “veículo combinado” e é invenção de Ben Ton, um holandês, mestre no aproveitamento do espaço, como não poderia deixar de ser.
Confesso que depois de uma vida inteira de catolicismo, jornalismo e universidade, me sinto pouco talhado para falar [sem ficar vermelho] de bens de consumo e objetos industriais. As patrulhas censuram – a relevância nos persegue. Um carro é nada na ordem do cosmos – quanto mais agora, com tanto tiroteio diário de sandices a serem combatidas, com a sanha dos cruzados.
Mas a Kombi merece uma exceção, digamos, por seu altíssimo teor semiótico. Cá com meus botões, presumo que uma pá de pessoas teria pelo menos um capítulo da biografia dedicada a esse automóvel – mesmo sem ser de um desses clubes de colecionadores que abastecem o noticiário de variedades – os “loucos por Fusca”, “doidos” por Gordinis, “tarados” por Vemaguetes.
Se me permitem jogar conversa fora, nos idos de maio de 1964, meu pai levou minha mãe para a Maternidade e Casa de Saúde São Vicente – na Rua Vicente Machado – a bordo de uma Kombi, aquelas cor verde desmaio, a mais “simplinha” da praça. Àquela altura, a cidade tinha 445 mil habitantes, 9,6 mil carros, o jornal de maior circulação local – o Última Hora, acabava de ser fechado a pedradas pelos defensores da intervenção militar. Ah, as duas músicas que mais tocavam na rádio eram a sacolejante “Datemi um martello”, com Rita Pavone, e a baladinha “I want to hold your hand”, dos Beatles – ambas apropriadas para distrair uma mulher em trabalho de parto.
Presumo que voltamos para casa, no Novo Mundo, os três – também a bordo da Kombi – com sorte ao som de “Ritmo da chuva”, do Demetrius, outro hit da época. De modo que “andar de Kombi” tornou minha primeira experiência de mobilidade. Os dias eram monótonos, se comparados a hoje, e não me espanto se alguém jurar que havia dinossauros na minha rua. Cresci vendo uma Kombi na garagem. Foi graças a ela, inclusive, que tive a primeira noção do que fosse uma tragédia, em média e alta escala.
Foi de dentro do carro da Volkswagen que vi um bujão de gás rolar em cima da perna da prima Fátima. Éramos dois fedelhos brincando no lugar mais excitante da Vila Cubas – a Kombi do meu pai. Lembro da queda e do grito como se fosse hoje. Ela sobreviveu – e confesso que invejei vê-la debaixo de tantos paparicos, de gesso para a gente assinar dedicatórias e com pesos pendurados ao pé. O segundo episódio foi um acidente, na Serra do Mar. Por um triz eu não estava lá. O saldo foi de um morto e dois feridos graves. Meu pai, o motorista, ganhou dezenas de pinos no ombro e eu, de presente, o pepino que é entender que viver é deixar o rabo na porta. Chamam isso de acaso.
A Kombi saiu do cenário, mas não da vida. Em 1978, a bordo de uma – de luxo, bicolor – bordô e branca – embarquei para Rio Claro, no interior de São Paulo. Da janelinha deu para ver o Seminário Claret e entender que algo mudava em definitivo a partir daquela cena. Andei de Kombi incontáveis vezes, até porque – ainda hoje, pelo que observo – são acessórios indispensáveis a conventos e mosteiros. Serviam para carregar alimentos recebidos em doação, ir para missões e, sobretudo, viajar.
Um dos reitores que tive, hoje bispo, tinha por tática programar passeios de Kombi, sempre que o clima da comunidade pedia uma descompressão. “O inferno são os outros”, como escreveu Sartre. Em uma hora estávamos todos lá, espremidos, pegando estrada e cantando “Andança” – sucesso de Beth Carvalho – com dois coros nem sempre afinados. Tempo “bão”, nosso That’70s Show, o seriado que amava. De Kombi fui a Aparecida. A Ouro Preto. A Campos do Jordão. Mudar a posição dos bancos, deixando um de frente para o outro, fazia com que nos sentíssemos numa sala – e não me espanta que tanta gente colocasse cortininha no veículo. Era veículo de alta letalidade, havendo batida, mas um chalé sob rodas, em caso de bonança.
Tudo bem – o esporte preferido da tripulação religiosa era soltar um peido silencioso, fazer cara de paisagem para não ser descoberto e ser o primeiro a abrir as ventoinhas, exortando à caridade. “Vocês não leram Coríntios, 13?” Anos depois, já na vida leiga e de volta a Curitiba, pedi a meu pai que me ajudasse a encontrar uma Kombi. Pragmático e avesso a nostalgias, disse que eu era pirado – “igual aos parentes da tua mãe”. E que se teimasse, que arrumasse uma garagem para guardar o trambolho.
Arrumei uma miniatura, na cor branca-e-bordô, com estofamento gelo e portinhas que abrem. Estacionei-a numa estante, em destaque. Tudo resolvido. Quando a vida está difícil, abro o matchbox e o deixo por uns dias arejando, para lembrar que é importante fazer travessias, como aquela dos tempos de menino. Uma das manas me deu uma caneca, com a estampa da mesma Kombi. Era tirada do armário apenas em ocasiões – dia desses quebrou, ao acaso.
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A respeito de objetos que atiçam nossas memórias, nervos e coração, recomendo o livro O mundo acabou!, do publicitário Alberto Villas. É de 2006, mas está tinindo de velho. Foi escrito como um catálogo de crônicas sobre coisas – no sentido filosófico do termo – que habitavam o cotidiano dos anos 1950 e 1960. Não canso de ler – em especial o capítulo sobre a calça de brim Far West, graças à qual tive consciência do que era o ser e o nada. Vamos deixar quieto.
A coletânea do divertido Villas trata de antiguidades tais como o relógio cuco, a bomba de flit, o caminhão FNM, o arroz-de-forno, a bicicleta Monark, as camisas Volta ao Mundo, o anil, a goma arábica e o Repórter Esso, o sapato Vulcabrás e a escola de datilografia. O papel almaço – e o papel carbono. O Bombril na antena da tevê. Os cigarros Mistura Fina (arranca peito). O óleo Singer. Roy Rogers. Tênis Bamba. Kichute. Toddy. Pente Flamengo. O Simca Chambord (também o tenho em miniatura, pois um dia jurei que teria um quando crescesse – o que ainda não aconteceu, como se pode perceber).