José Carlos Fernandes

Araci, aposentada e livre

José Carlos Fernandes
19/05/2019 20:00
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Professora aposentada Araci Spinelli da Luz, empenhada na defesa dos direitos humanos, mesmo aposentada ainda trabalha de graça na UFPR auxiliando os alunos. Foto: Hedeson Alves/Gazeta do Povo | Arte: Felipe Lima

No final do ano passado, vazou a notícia de que a professora Araci Asinelli da Luz iria se aposentar da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Houve quem gargalhasse – duvidando e fazendo pouco. Ainda que o projeto de reforma da Previdência seja um dos assuntos da hora – e um assunto que faz a gente rir de nervoso –, “aposentadoria” não é palavra no vocabulário dessa mulher. Quem a conhece, sabe das urticárias que o descanso lhe causam. A aposta, em qualquer rodada de seu vasto círculo de amigos, é a de que morrerá em pé como as árvores – e numa sala de aula. Não é de todo um palpite furado.
Araci completou 70 anos – só agora denunciados pelos cabelos brancos, os “anos-luzes” que faz uns meses ela resolveu não esconder mais. Os platinados lhe caem bem. Nesta soma de serviços prestados cabem 33 anos de UFPR. Somado ao tempo em que lecionou para colegiais e quetais, são quase 50 anos cravados de dedicação ao ensino. Com todo o respeito à maioria dos professores – cujo trabalho é de estivador – Asinelli da Luz, digamos, se excede. É seu natural. Além de abraçar mais tarefas e orientandos do que manda o juízo, ela se atira nas causas nas quais acredita, sem intervalo para o almoço. Um dínamo.
Exemplos? Às pencas. Durante mais de uma década, Araci subia num ônibus forrado de alunos de Pedagogia e se mandava para a Chácara dos Meninos de 4 Pinheiros, em Mandirituba, na Região Metropolitana de Curitiba. A atividade lhe consumia um dia inteiro. Entre ida e volta, 100 quilômetros, distância compensada por um ganho secundário: trocar ideias com o santo cívico Fernando de Góis, o ex-frade carmelita que fez da chácara um marco no atendimento da infância vulnerável e em situação de rua. Conheceram-se na rampa do Edifício Dom Pedro I, nos anos 1980, de uma vez por todas.
Ela descia e ele subia atrás de uma especialista em Paulo Freire, para orientá-lo. “Bateu no endereço certo”, brinca. Quando descobriu o que aquele sujeito que trajava as sandálias da humildade tinha criado em Mandirituba, divulgou a boa nova. Arrastou consigo levas de estudantes até lá; dezenas deles têm na 4 Pinheiros um capítulo pulsante da formação de educadores. Também arrebanhou outros educadores pesquisadores para o local, gente como Marlene Daros, Eliane Précoma e Tânia Stoltz, para citar três da imensa “turma da Araci”.
Como com ela nada vem em doses homeopáticas, tornou-se a madrinha de oito guris que viveram na casa de Mandirituba. Construiu com eles histórias, que se misturam com a de seus cinco filhos – da parceria conjugal com biólogo, educador e pesquisador Gastão da Luz, com folga uma das cabeças mais brilhantes dos pinheirais. Como prole pouca é bobagem, autodeclarou-se avó de Alyson, Jéssica e Felipe, filhos do casal Toni Reis & David Harrad, fundadores do Grupo Dignidade.
O quadro é perfeito para pintar a senhora Da Luz como uma referência em infância e adolescência – uma mulher na linha de frente na defesa do Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA. Mas, danada, ela não cabe num frasco. Como estica o tempo até não poder mais, conseguiu horas de estudo para se tornar um marco em questões de drogadição, dependência química e todo o rolo de arame farpado que envolve a questão. Qualquer jornalista que tenha feito reportagem a respeito, ouviu dos entrevistados: “Já conversou com a Araci?”
Na sensível questão das drogas, faz o tipo combatente. Como se dizia, ela manja e compra brigas quando a ignorância sobre o assunto extrapola os limites. Nossa heroína é bacana, bom papo, bem disposta – aluna exemplar até nas aulas de dança de salão, ministradas pela filha mais velha, Tatiana. Mas se o treco enrosca, sai de baixo. Sei de poucos entreveros envolvendo Araci, mas é de se imaginar que não seja uma unanimidade. Inclusive entre os mais progressistas, que estranham sua recusa em aceitar a legalização do aborto.
Mais? Falar da questão LGBT também passa por ela, pedágio obrigatório. E lhe é um assunto tão caro que pode ser ácida com os tolerantes de fachada. Detalhe – a rigidez é com ela mesma, como se lhe aplicasse cilício. Certa feita, quando cobria uma pré-parada da Diversidade, encontrei-a num trem, rumo a Paranaguá, em companhia de ativistas LGBTs. Levava de braço dado a filha caçula, Chiara. Não estava fazendo pesquisa, observação, nada. Queria simplesmente que sua guria tivesse a experiência de sentar num banco ao lado das travestis, que conversasse com as transexuais e toda a trupe, que lanchasse com um casal gay. O contrário disso é conversa mole.
Não gosta de discurso no evento, autoelogio e outras muletas emocionais. É de prática. Daí ser tão ou mais difícil entrevistá-la sobre questões pessoais do que era a doutora Zilda Arns, pouco dada a “deixas”, uma tortura para jornalistas. A fundadora da Pastoral da Criança dizia que o que fazia pelos outros era natural – “porque são seres humanos”. E ponto. Na mesma linha, Araci Asinelli da Luz responde “não faço nada de mais. Eu gosto de gente, bolas.”
Gosta mesmo. Numa panorâmica por seu currículo, a constatação é de que a única fronteira dos deserdados em que não pisou até agora foi a dos indígenas. “Estou me coçando”, avisa a mulher cuja trajetória forma um catálogo dos direitos humanos. Vai no osso, como se diz. Um episódio que a traduz bem é o do menino de Piraquara que atingiu sua professora de Inglês com uma faca, anos atrás. O episódio teve repercussão na imprensa e interpretações manjadas, com criminalização imediata do garoto, sensacionalismo e doses mínimas de reflexão. Quem fez a lição de casa, pegou uma condução e foi saber qual era a vida do menino? Pois é. “Você não faria o mesmo?”, devolve, no limite da paciência.
No girar da roda da sua vida, acontecem coisas comoventes, mas também divertidas. Ninguém fez estatística, mas arrisca ser ela a pesquisadora que mais orientou policiais militares e similares. É de supor que a rigidez dos fardados causaria reservas numa acadêmica entregue a polêmicas em série. Mas seu mantra é “nada acontece por acaso”. Dalton Gean Perovano, Luciano Blasius e outros agentes de segurança fazem parte de uma mirabolante galeria de orientandos. O mesmo se deu com professores de periferia ou pesquisadores ainda cheirando a leite. Se caíram na sua rede, deve ter algum motivo – não raro divino. No fundo, Araci ainda guarda muito da menina católica formada nos rigores das irmãs de São José de Chambery, no Colégio Nossa Senhora de Lourdes – o Colégio do Cajuru.
Recentemente, num evento no Ceará, reparou num grupo de policiais federais rodoviários, na primeira fileira, como bons alunos. Eram vinculados a um instituto de formação catarinense e queriam saber de Paulo Freire e de Edgar Morin – duas de suas especialidades, ao lado do psicólogo russo Urie Bronfenbrenner, cujas teorias ecológicas caem bem a essa bióloga tornada educadora. Pois a conversa não acabou por ali. Parte do séquito catarinense está agora vinculado a um grupo de pesquisa aberto à comunidade, liderado por Araci. Que também ofereceu, por tempos, uma disciplina de mestrado “para quem quisesse”. Diz-se que o lanche era ótimo, a prosa animada e a universidade do jeito que ela gosta – de portas abertas.
A máxima vale para ela, que pode ser encontrada em tudo que é canto, inclusive no presídio, em companhia da ex-aluna Ires Falcade, professora do Ceebja Mário Faraco, que funciona dentro do Complexo Prisional de Piraquara. Acabam de lançar o segundo livro juntas, a propósito. Resta saber como dá conta de tantas agendas. “Dormia três horas por noite. Ou nem dormia”, confessa. Como a saúde andou lhe cobrando, acaba de fazer uma revolução: tem descansado cinco horas, uma eternidade. Benesse da aposentadoria, confirmada no final de fevereiro.
Mas não lhe falem em despedida, sob risco de que se converta na “sogra ameaçadora”, alter ego que costuma assumir nos momentos em que alunos começam a abusar da sua bondade. Antes mesmo que lhe preparassem uma cerimônia de adeus – e se visse em casa, na cadeira de balanço –, cadastrou-se como voluntária no Setor de Educação da UFPR, agora instalado no Edifício Teixeira Soares, ao lado da Ponte Preta. Tem doutorandos até 2022, mais ou menos. Não recebe nada a mais por isso – obediente a uma política de cortes para pesquisadores seniores, instalada em governos anteriores. Passa bem obrigada. Está mais livre do que nunca – sem salário, sem horários, no lugar de onde vê o mundo: a universidade.