José Carlos Fernandes

As armas de Jorge, o Goura

José Carlos Fernandes
17/06/2018 21:00
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Foto: Marcelo Lima/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

Uns tantos colegas de mandato do vereador Jorge Brand (PDT) – o Goura, 38 anos – não devem morrer de paixão por ele. Palpite. Em política, sabe-se, amar é verbo intransitivo. Tudo indica que o sentimento parlamentar se estende ao prefeito Rafael Greca de Macedo, que duas vezes “soltou” o infame trocadilho “agourento” ao se referir à mais interessante liderança jovem surgida na vida pública paranaense desde as últimas temporadas de pinhão. Não é pouco, em se tratando de um meio dominado por constelações familiares e populismo. A performance de Goura – gostem ou não – é um cala-boca em quem o julgava não mais do que um rapaz bem-nascido, que sonhava fazer de Curitiba uma extensão de Amsterdã, “sua colônia de férias”, como acusavam os caretas.
Quanto ao gracejo – típico da verve paroquiana do pontífice municipal –, pegou mal. Quem riu é a mulher do padre, combinado? Mas nada que tenha tirado Brand do tatame de ioga ou do selim da bike – dois de seus espaços favoritos para manter a respiração. Por extensão, a rusga alimentou uma deliciosa piadinha de bastidores: “o belo e a fera”, alegoria que dispensa explicações. E chamou atenção para o beija-mão que impera na Câmara Municipal, objeto de vídeo recente publicado pelo vereador nas redes sociais. A peça mostra a velocidade com que alguns temas de interesse são votados, num flagrante caso de fisiologismo.
De fora da “patota” que fecha com o prefeito, Goura goza de um torturante isolamento político. Sofre aquele quebrante sistêmico, para ver se a planta seca. Quem tem a pachorra de acompanhar, vez em quando, os debates à la Sucupira constata que pautas relevantes são tratadas como abobrinhas ao vento. “Por eu não estar na base, tudo o que proponho sai com carimbinho de rejeição”, dispara. Apesar das olheiras e de um visível abatimento por trás do terno preto – que não lhe cai bem –, o vereador continua na tribuna, mantendo uma escala de qualidade até então rara naquelas bandas. “Confesso que ando cansado de apoios da boca para fora, durante o Maio Amarelo”, reforça, sem esboçar amargura com os que lhe dedicam tapinhas às costas. Tem, afinal, mais o que fazer.
Brigar pelos pedestres, por exemplo. Num mundo perfeito, a bateria de projetos desenvolvidos pela equipe de Goura seria o bastante para provocar grandes esperanças, como a de ver Curitiba, de novo, apontada como uma cidade de soluções urbanísticas inteligentes. O título está em dias de vencer ou de ser protestado. Redigiu para tanto um “Estatuto do Pedestre”. Previu a instalação de um conselho formado por gente que anda na rua – já engavetado pelos colegas, aliás. Simples assim. Não há sindicato disso ou daquilo para proteger quem pratica o gesto cívico de gastar sola de sapato, ocupando as calçadas de tijolinhos soltos da nossa Gotham City.
Paralelo à sanha dos pedestres, Jorge mapeou 190 pontos da área central da capital em que cruzar uma esquina equivale a uma tentativa de suicídio. O estudo serve de argumento para conquistar cinco segundos a mais de semáforo a favor de quem caminha, junto aos burocratas da engenharia de trânsito – quase sempre sem sucesso. “Pelo teu raciocínio, teria de haver muitos sinaleiros e passagens elevadas”, acusou um tecnocrata. A frase convida a sentar no meio-fio e chorar. A propósito, a coleção de declarações ouvidas – eivadas de pouco caso com quem anda a pé – ficariam bem num roteiro de horror. Ou num quadro do Porta dos Fundos. Prestam-se a confirmar o que afirma uma pesquisadora universitária parceira: nada aqui é diferente de qualquer outro lugar da América Latina. Para a cidade que ainda se orgulha de ser sede de invenções urbanas, o quadro de “soluções binárias” soa como uma derrota e assola paisagens urbanas como a da Mateus Leme e a Nilo Peçanha. Foram embora as “calçadas verdes”. O carro reina. Afinal, dentro dele se pode limpar as narinas e aliviar os gases intestinais, sem importunar ninguém.
Apenas automóveis, são 1,2 milhão em CWB, uma superpopulação de lata agravada pela soma de carros dos vizinhos vindos da RMC. Ano passado, 61 pessoas morreram atropeladas na capital paranaense, num total de 168 óbitos no trânsito. O pedestre só perde para o motociclista em termos de fatalidade. Em anos anteriores, como 2012, a estatística atingiu o pico de 107 mortos em atropelamentos. Lembre-se que nessas contas não estão os feridos, feridos com sequelas e demais categorias de estropiados por para-choques. Esses e outros dados coincidem com a ameaça contínua de fechar para balanço as políticas de mobilidade praticadas pela gestão anterior, pelo torpe motivo de que… surgiram na gestão anterior. É a marca máxima do revanchismo, expresso com requintes de pobreza de espírito. O rumo da prosa se sabe qual é: culpar os pedestres, como se a estrutura da cidade não tivesse influência sobre eles.
A boca pequena, o que se argumenta o potencial eleitoreiro alimentado pelos mais R$ 500 milhões a serem gastos em asfalto. Um acinte frente à falta de dinheiro destinado às calçadas – relegadas pela retórica municipal à responsabilidade dos moradores – e à melhora da sinalização, de modo a tornar a cidade mais cordial com os pedestres e os ciclistas. “Tem de dividir melhor este bolo”, protesta Goura.
Com que direito se pode dizer essas coisas? Com o direito de quem cruza os passeios e todo dia tem de fazer valer seu lugar numa passagem elevada. Um dia ainda me planto em protesto na que fica do lado da Igreja do Bom Jesus do Cabral (risos). Sei que não contarei com o som das panelas em meu desagravo. Antes que alguém se ofenda – temendo estar diante de mais um blefe de políticos fanfarrões –, importa lembrar que o jovem Goura, que há mais de uma década pôs a bicicletada para chacoalhar a capital, permanece em boa forma, sem dar bolas para as olheiras. Recentemente, criou um mapinha interativo para incentivar, como ele dizia em tempos idos de guri do Juvevê, a sair da bolha do carro. O dispositivo indica quantos minutos se leva para chegar, por exemplo, da Praça Tiradentes ao Palácio Iguaçu. A base de cálculo, para baixo, é que cada um poderia andar quatro quilômetros por hora. A quem interessar possa, apenas na região central 500 mil pessoas por dia fazem parte do seu percurso a pé. Uma saga.
Paralelo, a traquitana chama atenção para uma outra proposta– a de que mal não faria se tivéssemos pelo menos um percurso 100% inclusivo, capaz de conduzir um cadeirante entre a Santos Andrade e a Reitoria da UFPR. Ou levar, sem dificuldades, ao Museu Oscar Niemeyer, sem ser impedido pela diabólica rotatória da Rua Mário de Barros. Bem melhor um projeto assim do que o city marketing e o fetiche startup que torra a nossa paciência. Muitas vezes, não passam de bugigangas para exibir em eventos da moda. Chega a revoltar. As classes médias adoram dizer que se acabaram de tanto andar em Paris, mas aceitam passivas a condição precária dos nossos passeios.
Em tempo, uma das últimas do Goura – em parceria com urbanistas – é salvar as ruas de paralelepípedos, nossa marca registrada no passado. Meu pai as amaldiçoava dizendo que “espanava” os parafusos das carangas detonadas lá de casa. Mas era ao passar por elas que pisava no freio. Eis o ponto. Ruas de pedra são diferenciais para zonas de moradia, além de eficientes na absorção da água das chuvas. É assim no mundo civilizado, onde veículos em velocidade não combinam com o lugar em que a gente mora. Pois, de acordo com os levantamentos preliminares, sobraram míseros 28 quilômetros de paralelepípedos em Curitiba, 22 deles na Regional Matriz. Os demais jazem na obra do Dalton Trevisan. Em breve, a Comissão do Patrimônio Municipal deve receber um pedido para que analise a possibilidade de salvar esses trechos, sempre prestes a serem ocultados pelas feias camadas de asfalto. As pedras vão rolar.