José Carlos Fernandes

As observações de Caibar: viagens à esquina

José Carlos Fernandes
17/02/2019 20:00
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Foto: André Rodrigues/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

O professor de Língua Portuguesa e Literatura Caibar Pereira Magalhães Júnior, 58 anos, tem um estranho poder. Ele atrai chuva. Não se sabe por quais intenções dos deuses, o céu volta e meia desaba sobre sua cabeça, dando-lhe 1.001 razões para suspeitar de perseguição da natureza. Ou de praga de madrinha. “Bênçãos”, diriam os otimistas. Na dúvida, decidiu escrever sobre o assunto, exorcizando seus textos de escritor bissexto com temporais, garoas e chuviscos, paisagem útil na cinza Curitiba. “Mesmo quando não há motivo, coloco uma chuvinha na história”, admite.
Há poucas semanas – numa noite de tempo fechado, com trovoadas e pancadas de meter medo até na turma do Simepar – lançou Tiba, coletânea independente de contos e crônicas, cujo título é uma brincadeira sacada com o nome da capital paranaense. O livro – uma edição pequena e artesanal – é, como se diz, “um achado”, digno de ser protegido debaixo das melhores sombrinhas. A dúzia de leitores iniciais, que recebeu a obra para degustação, caiu de amores, a exemplo da cabeleireira de Caibar. “Ela descrevia detalhes enquanto tosava meu cabelo para esta entrevista. Fiquei surpreso.” Surpreso ficou também com as pessoas próximas que se sentiram denunciadas pelos personagens, incluindo dois parentes de altíssimo risco, o cunhado e a sogra.
Ele ri do que jura ser pura coincidência, licença poética e em o que mais a teoria literária e a legítima defesa puderem socorrê-lo. Fato mesmo é que Caibar tem um caso antigo com o jornalismo, motivo pelo qual suas narrativas esbanjam registros da realidade e se nutrem de figuras com as quais cruzamos no Calçadão da XV. Aos 17 anos – antes de entrar para a faculdade de Direito, abandonada no meio, por incompatibilidade de gênios –, arrumou emprego como revisor no jornal Indústria & Comércio, do homem de imprensa Odone Fortes. Nas décadas de 80 e 90, o periódico era a escola da vida dos recém-formados, daí ser tão cultuado. Foi como cair no buraco de Alice. Ali fez amigos para a eternidade e provou da cachaça de uma redação. Nunca mais se curou. Cultivou as lides da notícia mesmo quando se atirou no ofício que seria seu ganha-pão pelas três décadas seguintes – o magistério.
O ensino começou como uma aventura de mocidade – aquela mocidade do pós-tudo, ainda crente de que mudaria o eixo da Terra. Magalhães cursava Letras-Inglês na UFPR quando um amigo o convidou para dar oficinas para professores, sertões do Paraná adentro, mochila nas costas. “Conheci lugares como Ramilândia”, brinca, sobre o estado que tem pelo menos 150 lugares de nome esquisito, em meio a seus 399 municípios. Depois de comer muita poeira, veio o convite para trabalhar em cursinhos pré-vestibulares – todos os que você, leitor, ouviu falar e os que só alguns sobreviventes conhecem, a exemplo do Curso Anchieta. Chegou a ultrapassar 60 horas no tablado, arrebanhando leitores para Augusto dos Anjos, José de Alencar e Machado de Assis. O país lhe deve uma comenda por serviços prestados.
“O problema é que se trata de um emprego, não de uma profissão”, comenta, sobre o ofício que o catapultou à fama entre os jovens. É só fazer a progressão aritmética das salas apinhadas de gente, anos a fio, regidas pelo professor, para ter uma ideia da multidão que atingiu. Raro quem esqueça uma estrela de cursinho, pelo show e pela alquimia de macetes que aliviam as dores do vestibular. Mais raro ainda não lembrar do mestre cordato de rosto marcante, para quem falar de livros e de autores é mais partilha e menos exibição iluminista.
Posso atestar que perdi a conta dos alunos que me disseram, na universidade, terem se encantado com a literatura nos cursos preparatórios dados pelo Caibar. Muitos sabiam dos seus êxitos, em especial na poesia (publicou Dizem que sou palavroso, entre outros), e contavam terem tido aulas com um escritor de verdade. Ele desconversa e agradece a deferência. Informa que escreve de vez em quando, sem disciplina, em meio às lacunas do calendário, hoje dedicado aos aulões para concurso público e preparação e revisão de originais. A prosa fluida e saborosa de Tiba, contudo, o desmente. E confirma o que atestam seus pupilos, geração após geração, caibarianos devotos. Muitos, aliás, o que faz dele o autor desconhecido mais conhecido da redondeza. Tem dessas coisas.
Caibar não é estranho ao meio literário paranaense – circuito que se habituou às reservas do amigo. Foi colega de faculdade do poeta Marcelo Sandmann e do pesquisador Paulo Soethe – ambos professores da UFPR. Teve como orientador de mestrado um dos mais renomados tradutores do país, Caetano Galindo, que o conduziu numa dissertação sobre o romance O filho eterno, de Cristovão Tezza, autor de quem também se avizinha. A rede de Magalhães é robusta, mas ele prefere o conforto da sombra, a salvo do excesso de expectativas. Sua dinâmica de produção segue essa mesma dança lenta. Morador de um sobrado no Uberaba – ao lado da mulher Adriane e do filho Víctor –, faz o gênero flâneur. Neste momento, pode estar numa praça do Centro, em plena observação de tipos humanos, como se diz no jornalismo, exercitando o repórter que grudou a sua pele.
Não à toa, cita jornalistas como Eliane Brum (fez-se um leitor entusiasmado do inclassificável A vida que ninguém vê) com a mesma facilidade com que comenta a obra de Guimarães Rosa. Os textos que produz são migrantes, miscigenados, refugiados das caixinhas de sempre. Contos castiços, dotados de um desfecho rápido e extraordinário, confundem-se à arte da crônica, o que chega a dar uma ponta de tristeza. Explico: é uma pena que os textos de Caibar não estejam nas páginas dos jornais, pois nasceram para figurar ao lado das notícias, bem a gosto do gênero que há um século, pelo menos, caiu no paladar dos brasileiros. Magalhães é da linhagem de Lima Barreto, João do Rio, seguindo por Rubem Braga e os mineiros da trupe de Fernando Sabino. Nunca lhe escapa uma pequena grande história, daquelas que apimentam o cotidiano e salvam o expediente da roldana da repetição.
Sua habilidade em andar na ponta dos pés – entre a literatura e o jornalismo – o coloca ao lado da revelação de 2018, Geovani Martins, criado no Triângulo das Bermudas Bangu-Rocinha-Vidigal e autor do festejado O sol na cabeça. E do, assim como ele, quase anônimo Luiz Antônio Simas, que assina o delicioso Ode a Mauro Shampoo e outras histórias da várzea. Ambos são observadores de figuras que vivem à beira da excentricidade, mas que na prosa nunca são tratadas como exóticas, um número de circo ou um boneco nas mãos do ventríloquo.
Em comum com seus contemporâneos, Caibar esbanja a vista comprida. Enxerga a ficção que a cidade esconde em cada esquina. Não à toa, tem como um de seus mantras uma frase de Caetano Veloso. “Estou cego de tanto ver.” Essa verdade o mantém acordado. “Rapaz, observar é um exercício. Senão passa batido.” Enxerga o que a gente vê todos os dias – o cara do saco de gato, que faz performance para curiosos, o vendedor de guarda-chuvas que parece brotar do chão, a velhinha que resiste à solidão dos apartamentos, o coveiro que tudo percebe e o entregador de jornais – hoje em extinção. Na sua pena, todos desafiam os rótulos. São verdadeiros engana-olhos (trompe l’oeil). Eis a graça.
A propósito, não se espante se, ao conversar com ele, você estiver sendo impresso na linotipo interna de Caibar. O sujeito de sorriso a postos, tímido e de fala mansa capta a novela de cada um. A badalação literária de fato não lhe faz bem – tem mais do que se ocupar. Dizem que ele chama a chuva, mas acho que a chuva é que o chama. Alguma cor sempre emerge da luz prateada que lava a cidade. Ele a vê. Sorte a nossa.