José Carlos Fernandes

As visitas da irmã Araújo

José Carlos Fernandes
23/09/2018 20:00
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Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

Uma das lembranças mais tocantes que a jornalista Elisabeth Franco Fortes, a Beth, 73 anos, tem da ditadura militar – um “tempo de guerra, um tempo sem sol” – se refere a um relógio de pulso feminino. Os mais antigos se lembram do modelo – popular e por certo barato, à venda em qualquer lojinha de turcos do Novo Mundo. Era quase uma miniatura, redondo sem adornos, com pulseirinha de couro e que exigia que lhe dessem corda toda noite. Pois Beth ganhou um emprestado quando se tornou presa política, na hoje extinta Penitenciária do Ahú, depois de sua participação numa assembleia da União Nacional dos Estudantes, a UNE, então na clandestinidade. O episódio ficou conhecido como o encontro da Chácara do Alemão.
Beth cruzou o hall do presídio dia 18 de dezembro de 1968, cinco dias depois do AI-5, decreto que instalou a censura e o terror no país. Sentia todas as agonias catalogadas à época – uma em particular: não saber as horas, que no cárcere são lentas e vadias. “Sou obcecada por horários. Posso estar saindo de uma cirurgia – me interessa mais saber que horas são do que se fui curada”, diverte-se.
Na ocasião, uma religiosa baixinha, de 50 anos, denunciados por uma mecha branca de cabelos que lhe escapava pelo véu, fazia Pastoral Carcerária na instituição. Chamava-se Tereza Araújo, ou irmã Araújo, como ficou conhecida. Em visita à cela que Beth dividia com outra presa política – a futura historiadora Judite Trindade –, a freira percebeu a luta com as horas travada por aquela estudante muito alta e expressiva. Pois tirou o reloginho do pulso e colocou-o no pulso da detenta. De nada adiantou o “deixe disso” e o “não precisa” Durante um ano e meio – tempo que durou aquele idílio –, o objeto saído da voto de pobreza de irmã Araújo ajudou Beth a suportar as aproximadas 21,8 mil horas de castigo que lhe colocaram na conta.
Em meados de 1970, assim que deixou o presídio, Beth procurou a freira. Não recorda ao certo onde se encontraram. É provável que na sede provincial do convento das Filhas da Caridade, as vicentinas, na Avenida Manoel Ribas. Devolveu o relógio, agradeceu por tudo. Àquela altura, tinham se tornado amigas-irmãs, protagonistas de uma pequena história de solidariedade em meio aos escombros. Se a memória não lhe falha, e diz muito, a irmã Araújo não carregou outro relógio no braço durante todo o período em que se ocupou de Beth, Judite e de outros 13 rapazes, grupo que entrou para a história da resistência como os “15 do Ahú”. Vale um exercício de livre interpretação.
Com perdão ao clichê, a prisão dos “15” é digna de um filme – à maneira do que Helvécio Ratton fez com Batismo de sangue, baseado nas memórias do cárcere de Carlos Alberto Libânio Christo, o frei Betto. Batismo reconstitui, entre outros episódios (o suicídio de frei Tito, por exemplo), o reprimido encontro da UNE em Ibiúna, São Paulo, em outubro de 1968 – do qual inclusive Beth participou. Em dimensão menor, o encontro na Chácara do Alemão – como era chamado um espaço de lazer, de propriedade do menonita Jacob Neufeld, no bairro do Boqueirão – não só repetiu a ousadia de Ibiúna como o fez num momento ainda mais nevrálgico: nas barbas do AI-5. Na ocasião, 42 estudantes ganharam ordem de prisão, beijaram a lona do camburão, tiveram fotos estampadas nos jornais, qual bandidos. Na capa da Tribuna: “Um congresso clandestino acaba assim”. Numa arbitrariedade típica do período, 15 militantes foram condenados. Da lista faziam nomes como Vitório Soratiuk, hoje advogado, e Antônio Mânfio, educador.
No Ahú, uma sala de aula foi transformada em cela para os meninos recém-chegados. Perto, nas cercanias do refeitório, ficavam as meninas. As visitas da irmã Araújo aconteciam com disciplina monástica. Não raro vinha acompanhada de alguma outra companheira de claustro. Trazia livros – que os estudantes lhe encomendavam –, driblava o índex, fazia a ponte entre a turma e seus advogados e familiares. Conversava, muito. As descrições sobre ela se parecem, à revelia das traições da memória, 50 anos depois. Descrevem-na como uma mulher dócil, dona da serenidade de quem medita, boa ouvinte e voz baixa, sem medo de tocar nas pessoas. “Ela colocava a mão dela sobre a mão da gente. Sabe como é que é?”, descreve Beth.
Era corajosa – e divertida, se preciso fosse. Cearense de Pacoti e de origem rural, tinha como nome de batismo Maria Pinheiro Araújo. Passou a se chamar Tereza na década de 1940, obedecendo ao costume de mudar de nome assim que os religiosos assumiam a vida consagrada. Com certeza “Tereza” é uma alusão a Teresa D’Ávila, uma das mulheres mais fortes da hagiografia católica, “Teresona” nos bastidores eclesiásticos. Mas também lhe serve a amorosa e emocional Teresinha de Lisieux, a menina que amou Jesus de forma quase pagã.
Um dos registros lendários em torno das visitas da irmã Araújo foi o de ter amarrado uma garrafa de pinga à perna, embaixo do hábito, para driblar a revista policial. Dá para imaginar a surpresa da audiência ao ver surgir uma aguardente em meio ao rosário e ao breviário. Justa causa. Um dos piás precisava de um trago, tanto quanto Beth de um relógio. “Não me recordo dessa passagem, mas não duvido. Era a cara dela”, comenta Fortes. “Eu a vejo tão simpática, tão miudinha, tão doce no tratar. A gente tinha medo de qualquer pessoa, mas não dela. Nós a adorávamos. Naquele ano e meio, virou nossa ligação com o mundo.”
Àquela altura – e temperatura –, é provável que os “15” não tivessem a dimensão real da pequena irmã Araújo, às voltas com as causas abraçadas por dom Hélder Câmara e com a chamada Igreja dos Pobres. Na ocasião em que decidiu trabalhar com presos políticos, era uma expoente das Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo, as vicentinas, congregação francesa com forte presença missionária no Brasil. Formada em Enfermagem, tinha dado aulas em faculdade e fundado hospitais, inclusive em Apucarana, no Norte do Paraná. Tudo indica que o golpe militar de 1964 tenha alterado seus planos, lançando-a numa viagem sem volta por divisas que pouco tinham a ver com a paz e a ordem conventual.
Aos poucos diminuiu seu papel de madre dos altos escalões e ganhou corpo a mulher engajada com as Comunidades Eclesiais de Base, as CEBs. A militância religiosa no Ahú teria sido uma de suas aterrissagens. O nome de Araújo está ligado a outro episódio da resistência – o abrigamento de presas políticas no convento da Avenida Manoel Ribas, entre elas a também estudante de jornalismo Teresa Urban (1946-2013), que cumpriu pena, ali, por dois anos. Se permitem um desvio de rota, há uma curiosidade que une Urban a Fortes. Além da resistência irrestrita à ditadura, da prisão e da condenação, da escolha do mesmo ofício e terem sido “quase” parentes, Urban ganhou do pai – o empresário polonês Estanislau – um relógio de presente, assim que terminou sua pena, em 1974. Contava presumir o que ele quis dizer, mas decidiu fazer do objeto um símbolo do que queria dali para a frente. Botou os ponteiros para funcionar e chamou para a briga. Beth, do mesmo modo, não esconde o caráter simbólico do relógio em sua vida.
A propósito, os ponteiros também partiram em disparada para irmã Araújo. Poucos anos depois das visitas ao Ahú, a vicentina fundou uma comunidade inserida no Boqueirão (o Boqueirão mais alagadiço, diga-se), bairro à margem dos êxitos da cidade-modelo. Ali desenvolveu não só a comunicação popular como dividiu seus conhecimentos em saúde. Com méritos, uma das melhores unidades de saúde da capital, naquela região, leva o nome de Tereza Araújo. Assim como a ONG Cefúria, Centro de Formação Urbano-Rural Irmã Araújo, criada em 1981, quando a religiosa morreu, aos 62 anos, “antes do tempo”. Há escritos esparsos sobre ela – nos documentos internos das vicentinas, nas lides do movimento social e numa competente dissertação da socióloga Letícia Figueira Moutinho Kulaitis, disponível na rede. A pesquisa de Kulaitis é uma investigação sobre a ação social da freira à luz de Pierre Bourdieu e Norbert Elias.
Via de regra, contudo, já são horas de recolher depoimentos sobre as conversas de irmã Araújo com seus jovens rebelados. “Nossa cela está cada vez menor”, disse um dos ex-presos a Beth, dia desses, diante de mais uma baixa na tropa dos 15. Ela se emociona ao lembrar dos mortos da Chácara do Alemão. E da mulher trajando hábito que lhe estendeu a mão. Hoje se sabe – foi um dos muitos gestos revolucionários da discreta freirinha do Ahú. Boa lembrança para dias raivosos.