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Foto: André Rodrigues/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima
Foto: André Rodrigues/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima| Foto:

Reparem – o desejo de uma boa parcela de gente é descobrir alguém. Fulana cozinha como poucos, mas só os seus familiares o sabem. Lembra o João? Ele escreve e terá história semelhante à do Geovani Martins, o jovem do morro carioca que estourou no mundo com o livro O sol na cabeça. Não foi o Nelson Motta quem descobriu a Marisa Monte num boteco? Na impossibilidade de não sermos todos uma promessa do universo, resta-nos a chance de revelar para o universo a genialidade de alguém. Troca justa.

Alguns talentosos, inclusive, são descobertos mais de uma ocasião e por mais de uma pessoa, tamanho o impacto que causam. É o caso do escritor e artista plástico curitibano Carlos Dala Stella, 57 anos. A primeira vez que ouvi falar dele foi por meio do escritor paranaense Miguel Sanches Neto – e faz tempo. Sugeriu-o como cronista para a Gazeta do Povo. Não economizou nas tintas. Falava a verdade. O texto de Dala Stella chegava límpido, enxuto e cortante, uma afinação perfeita para a leitura de jornais. Editá-lo seria passível de prisão em cela de delegacia.

Até hoje cito com prazer uma de suas publicações, sobre a obscuridade das apresentações que diversos críticos de arte fazem nos catálogos de exposição. Algumas frases pinçadas por Carlos provavam que o “arteplastiquês” dizia… nada. A análise que fez é perfeita para ilustrar o culto ao obscurantismo cultivado pelos mais letrados, prática que serve apenas para embananar o acesso ao conhecimento. A carreira de Carlos como cronista foi curta – tinha mais o que fazer, inclusive em silêncio. O isolamento voluntário reforçou sua aura, e o número de candidatos a descobridores. Eis a graça.

Entre seus admiradores teve ninguém menos do que Poty Lazzarotto. Frequentavam-se. Não tenho a fonte, mas Poty teria visto em Carlos, se não um continuador, um elo. Não tive coragem de lhe perguntar a respeito: Dala Stella é reservado como um monge, sensível aos elogios, que lhe soam como palavras fora do lugar. A propósito, soube que tem entre seus admiradores Dalton Trevisan, mas, como reza a cartilha do Vampiro, esquiva-se do assunto. Ponha-se na lista de admiradores toda a horda literária da cidade – que sonha tê-lo como ilustrador – e ex-professores, a exemplo de Marta Morais da Costa, que acaba de organizar e prefaciar uma coletânea de poesias do pupilo, A arte muda da fuga, em edição de luxo da Editora Positivo.

Ao lado de Marta (a mulher de fino trato que lhe apresentou O casamento, de Adélia Prado, corrompendo-o de uma vez por todas), a editora Cristiane Mateus fez o que qualquer um faria diante da obra literária e gráfica de Carlos – estranhar que ainda pareça inédito e se apressar em contar para meio mundo o que acontece no esconderijo em que vive, no bairro Santa Felicidade. O último livro de Carlos é fruto da teimosia de Cristine.

É fato que nosso artista em segredo andou pelo mundo. Na mocidade, mochileiro, recém-formado em Letras pela UFPR, vagou pela Europa. Na Itália fez sua primeira exposição – e vendeu tudo, mesmo sem ser escultor ou desenhista. Na ocasião, estabeleceu-se a deliciosa contradição da sua vida. Ele se vê como escritor – dado ao conto e à poesia –, mas os seletos que se aproximam dele se rendem, sobretudo, à engenhosidade dos desenhos que faz, em especial os realizados com a ponta de um estilete. O livro Bicicletas de Montreal, produzido no breve período vivido no Canadá, é uma prova disso. Os felizes proprietários de um exemplar o exibem aos amigos e cumprem o ritual: “Esse é o Carlos Dala Stella”. Quando dizem isso, o artista está onde sempre esteve – num terreno escondidinho, nas cercanias do Bosque São Cristóvão, em Santa…

Os avós, os pais, os irmãos, Carlos e seus dois filhos – o cineasta Matias e o filósofo Gabriel –, todos nasceram e cresceram no mesmo lugar. Não é espaço luxuoso – o patriarca dos Dala Stella trabalhava como caminhoneiro e tinha ciência para a marcenaria, o que explica muita coisa. “Acho que herdei a habilidade dele”, diz Carlos, numa rara concessão ao autoelogio. A casa com quintal está preservada, com muitas árvores – que barato os pinheiros gigantes. O poeta-artista sabe nominá-las, assim como a qualquer matinho secundário e passarinhos que porventura apareçam por lá. Da varanda, vê-se o bairro italiano por cima da copa das árvores, paisagem interrompida apenas pela torre da Igreja São José. O proprietário quase não sai dali. Vez ou outra recebe alunos de publicidade, trazidos pelo amigo André Tezza, ou visitantes para as esparsas exposições que monta no ateliê, sem pompa.

Durante um bom período, o sustento da casa vinha de aulas de escrita para doutorandos, mestrandos e vestibulandos. Até a gota d’água. Carlos se tornou um daqueles casos invejáveis de cidadão que consome pouco, vive sem precisar de muito e, em troca, tem horas e horas para cultivar a cultura, essa amante exigente. “Corto meu cabelo”, avisa. Os dias no imenso ateliê erguido com tijolo bruto são longos, ocupados com música de qualidade, leituras e produção sem peias. Um sem-número de poemas acaba por ser concluído na cama, madrugada adentro. Quanto à produção gráfica e as pinturas, é variada, produzida sem pressa. “Para que tanta mesa?”, sussurrou uma conhecida, dia desses. São para produzir melhor, em diferentes pontos do espaço, de onde enxerga de outra maneira.

Acerta quem suspeita que, a essa altura de tanta entrega, a obra de Carlos Dala Stella seja… gigante. Apenas A arte muda da fuga tem 110 poemas selecionados – dentre os produzidos entre 2014 e 2015 (“nunca o silêncio me foi indiferente, cada vez mais interfiro na trama de seus fios transparentes / quem sabe dessa parceria um dia surja a arte muda da fuga”). Dá para imaginar a lenha que foi escolhê-los. As paredes estão repletas de telas e, pelos cantos, os relevos monumentais, técnica aprendida com Poty. Ali se esconde também um dos, digamos, tesouros de Dala Stella: os diários. São cravados 70 livros, produzidos ao longo de 39 anos. Mas não são livrinhos. Somam entre 15 mil e 20 mil páginas. Precisam ser vistos numa mesa, tamanhos. Pretos, capa-dura e costurados nas mais diversas técnicas das antigas impressoras – “aprendi a fazer na internet” –, guardam reflexões do artista sobre tudo.

Não tomem os diários pelos nossos caderninhos suarentos, escondidos nalguma gaveta para a mãe não achar. Trata-se de obras de arte, de primeiríssima. Os escritos são intercalados com desenhos – inclusive os feitos com recortes de estilete –, colagens, e por versos, ali transcritos assim que concluídos, com lápis de cor. Um primor gráfico. Nenhum dos cadernos de Carlos está à venda. No máximo, foram vistos ali mesmo, por meia dúzia de eleitos. Ainda que admita não gostar da palavra, o “virtuosismo” das figuras construídas com vazados impressiona tanto que nos rouba atenção da poesia. Ele se chateia com a escolha, é claro. Tive a honra de ver uma parte da produção de arte erótica guardada nos diários. Pedem silêncio. Essa parte da produção “depende de quem estiver namorando no momento”, brinca. Uma amostra dessa categoria de obras ilustra o livro Bilhetes para Wallace, de Paulo Venturelli, lançado pela Kotter Editorial em 2017.

Os amigos-descobridores, como Venturelli, arrumam pretextos para romper o quase anonimato de Dala Stella, condição da qual, creiam, não lhe rouba um minuto de sono. Simples entender. Por força dos dois filhos muito jovens, Carlos se tornou um observador sagaz da mocidade. Admira-lhe o cuidado que eles têm pelo planeta, o respeito às diferenças, a tal da “espiritualidade laica”, para emprestar aqui a expressão cunhada pelo filósofo francês Luc Ferry. A convivência com a moçada lhe deu a convicção de que o trabalho que faz não precisa ser consumido agora. É seu testamento para o futuro. Lá… na frente, acredita, alguém entenderá a despretensão da poesia que escreve todos os dias, os desenhos cheios de tesão e por que é tão saudável ter tantas mesas espalhadas pela casa, de onde se pode ver – ainda que um microespaço – de mais de um ângulo. Sim, a obra desconhecida de Carlos Dala Stella é um documento visual e poético para o amanhã. Para concluí-lo, ele precisa da solidão de um quintal em Santa Felicidade.

***

A arte muda da fuga, de Carlos Dala Stella, tem lançamento neste sábado, dia 10, na Livraria Arte e Letra (Rua Dom Pedro II, 44), a partir das 11 horas.

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