José Carlos Fernandes

Hélio Leites receita: tarja branca

José Carlos Fernandes
28/10/2018 20:00
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Arte: Felipe Lima

À revelia do telecatch que marca as eleições para presidente da República, o performer paranaense Hélio Leites, 67 anos, há de sair por cima – e com a mão na taça. É expert em driblar a força bruta e humores intestinos. Ao longo da carreira, sofreu achaques de tantos seguranças, guardas e policiais que há quem diga só haver um concorrente à altura – o personagem Carlitos, sempre às voltas com brutamontes a pegá-lo pelo cangote e a jogá-lo na sarjeta. Um dó.
De toda a folha corrida de Leites em matéria de pés na bunda, para vergonha nossa, um episódio se destaca. Foi na Câmara Municipal, coisa de 30 anos atrás. Hélio, à época bancário, já encantava a capital com seus objetos poéticos, feitos de sobras do dia a dia. Uma de suas militâncias estéticas era confeccionar à mão, com canetinhas hidrográficas, bottons em minúsculos adesivos de papel. Distribuía o mimo na abertura de exposições, estreias de cinema e solenidades relacionadas à cultura. Colava-os à lapela dos visitantes, soltava trovas, quebrava protocolos, galgava os degraus da fama de maluco beleza made in Pilarzinho.
Na ocasião, um vereador em maus bofes não gostou nada de ver no salão nobre aquele sujeito alto, vestido como se tivesse saltado de um caminhão da Caravana Holiday – a do filme Bye bye Brasil, do Cacá Diegues. Era um legítimo mambembe, à solta na cidade que adora um salto alto, um sobrenome e, dizem, sente saudade das polainas e dos coturnos nas mesmas proporções. “Só vi a autoridade me indicar lá de cima para o guarda, com a ponta do nariz”, recorda-se, com ácido a gosto.
Pois deu um bafafá, seguido de um sururu, culminado num forfait. Artistas, intelectuais e jornalistas presentes bufaram ao flagrar a babaquice. E nada que impedisse Hélio de ser conduzido para a saída, alvo de tratamento reservado aos maltrapilhos, penetras e desafetos paroquiais. De repente alguém se fez entender, resgatando a moralidade com uma frase de efeito: “Deixem o rapaz… ele é uma figura folclórica da cidade”. Leites jura que passou uma borracha nessa história, mas não perde a piada: “Somente sendo ‘figura folclórica’ para ser artista em Curitiba”. No mais, mostra a língua: “Fazia tempo que um homem tão grande não me convidava para sair”.
De outra feita, Hélio chegou a um albergue para contar histórias aos desvalidos, a convite da Fundação Cultural. Foi vestido a caráter. Mal abriu a boca para se apresentar ao porteiro, ouviu um sonoro “não tem vaga”. Pediu, então, que chamasse a freira que cuidava do local. Ao vê-lo, a irmã deu-lhe um nada santo passa-fora. Disse, impaciente, que todo mundo estava dormindo – “mas não são nem 6 da tarde”, argumentou. Como é osso, insistiu até conseguiu fazer sua apresentação para um mísero hóspede, um menino. Foi um encanto. Na saída, levou outra dura do porteiro. Por que não contou ser artista? “Porque meu sangue ferveu. E só com sangue quente a gente faz arte.” Eis o homem.
Verdade seja dita, a maior parte das confusões envolvendo Hélio Leites é contada sem rancor aparente. Ele não esconde que está meio sacudo – com a onipresença da internet; com os espaços culturais que viram Madero; com a Casa Andrade Muricy que não reabre nem a pau. Mas, como é viciado em jogar amarelinha com palavras, deixa para lá. Prefere se entregar ao maior dos prazeres, do qual é flagrante dependente: extrair historietas bonitas de dentro das caixinhas de fósforo, seu palco portátil, base da produção reconhecida em tudo que é rincão, exceto pela turma da segurança. “Quando a ignorância é presente, a educação é a distância”, repete.
Hélio é adepto da graça, conceito que domina com verve de catedrático da Sorbonne. Peçam-lhe uma aula. Não se trata de humor – ainda que poderia ser consultor do Zorra e do Porta dos Fundos. Nosso artista folclórico não arranca gargalhadas nem faz morrer de rir. Antes, tira um sorrisinho de canto de boca, deixe a gente com cara de bobo, bolados com suas pegadinhas. Diz frases nonsense como “faço interurbano para Deus, a cobrar”. É capaz de molecagens, falar em cuspo e demais escatologias. Ele nos oferece um ópio, sem contraindicações.
Para esses tempos de ânimos exaltados e ódios cultivados em cristais, desenvolveu uma série chamada “Tarja Branca”. É autoexplicativa. Como de resto, não tem segredos mirabolantes. Bastam-lhe frascos com conta-gotas, catados nos lixos. Amarra uma fita branca no gargalo, cola um rótulo artesanal – sua marca registrada – e, dentro do canudo, entroniza minúsculas imagens de Santo Antônio e São Francisco, de confecção própria. “Dois em um”, informa, sobre a traquitana que promete proteção prolongada, como os melhores desodorantes.
“É um santo remédio. Medicina psicolúdica”, avisa, não sem antes revelar uma espécie de segredo industrial. “Tarja branca” inclui, em cada frasco, um fio de cabelo arrancado da cabeça do próprio artista. Sua vasta cabeleira – só na parte da frente – é cultivada nos últimos anos, para ser usada como artefato na contação da lenda das Cataratas do Iguaçu. Serve também para simular a tragédia das Torres Gêmeas ou reproduzir o bigode de Dalí. As crianças adoram ver aquela cascata de mechas doidas despencar no meio da fala. Na Feira de Artesanato do Largo da Ordem – onde Hélio tem uma barraca concorridíssima, em especial pelos turistas –, os lotes de “Tarja Branca” não esquentam lugar na prateleira. Viraram produto de exportação. “Não precisa de receita, não precisa de farmácia”, publiciza.
A “graça” extrapolou os limites do próprio Hélio – entre o Pilarzinho, onde mora com a mãe Maria Emília, 93 anos, e o Largo. Há quatro anos, o cineasta Cacau Rhoden batizou de Tarja branca o documentário que produziu sobre pessoas brincantes, Leites entre eles. E o editor Luiz Andreoli convenceu-o a usar essa expressão para dar nome ao livro de crônicas reunidas, lançado em 2017, pela Editora Prosa Nova. As vendas não avançam, mas nada que o intimide. A cada volume que desova, reserva o mesmo ritual: enche o meio das páginas de confetes, para que se espalhem quando são abertas. Dia desses, uma menina chorou e catou cada papelzinho colorido que caiu no chão. Leites é um poeta das miudezas – da escola de Manoel de Barros.
Não faz muito tempo, encasquetou de repassar um livro sobre sua obra, Pequenas grandezas, organizado por Rita Pires. Ofereceu-o a um operário da coleta de lixo, sem muito sucesso. “Tem figurinha”, avisou. Funcionou. Dias depois, o moço o procurou. Contou que tinha chegado havia pouco à capital. Sozinho na noite de Natal, restou-lhe a companhia do livro, no qual se pode ver as misérias que Hélio faz com latinhas de leite Ninho, sapatos velhos e bonés. Emociona-se, mas não esconde que gosta mesmo é de um desafio com os fregueses, com quem se estranha sem agredir. Ao dizer a uma delas que se deve escrever a lápis, para poder apagar e esquecer, ouviu um zangado “na minha casa não tem lápis…” Devolveu com um provocador “então mude de casa”. Por aí vai o baile.
É quase inconsequente enquadrar Hélio Leites numa gavetinha artística. O poeta Paulo Leminski, por exemplo, o resumiu nas frases “o pregador de botões” e “o significador de insignificâncias”. Esse último lhe coube tão bem que o termo batizou um documentário dirigido pelos cineastas Fernando Severo e Diego Lopes, em 2016. Mas o fato é que HL sassarica na prosa e na poesia, nas artes visuais, na cultura popular – da qual é expoente. Inegável que é um ator de teatro, um contador de histórias e até um estilista. “Gostou de meu boné vintage?”, pergunta, referindo-se a um raro e surrado item com a logo do Café Damasco.
Tira-o rápido para colocar outro artefato – um chapéu modelo Bacamarte, conseguido numa viagem aos sertões do país. Pelejou. Precisava, para seu “teatro do boné”, já que faz da sua cabeça um palco. Calcula que o dono da peça – um matuto – o usou por mais de 30 anos. Está todo furado, puído e na mira da primeira faxineira que aparecer. Para amealhá-lo, usou de uma linguagem internacional – “pago cincão”. Levou. Hoje a peça se mistura às pilhas de quinquilharias que Hélio acumula num quarto-ateliê, no qual se entra dando braçadas.
Chamam atenção, no espaço caos, as fotos da poeta Helena Kolody, de quem foi amigo. Para ela faz novenas e reivindica – com a autoridade da seita que criou, a Igreja da Salvação pela Graça – que seja canonizada como “santinha municipal”. O tom é de brejeirice. O grau de comprometimento com dona Helena, não. Costuma limpar o túmulo dela e deu de musicar poemas da musa. Mesmo que cantar não esteja entre seus múltiplos talentos, convence. Passaria por um puxador de procissão. Nada lhe é impossível – nem imitar narrador de rodeios, o que faz com maestria. Leites é um ser em estado constante de criação e improviso, para desespero dos que desconfiam da sensualidade da arte. Os seguranças que o importunam, suspeito, não são mais do que reflexo da limitação de quem os manda retirá-lo da cena. Bananas para eles.