José Carlos Fernandes

Herdando uma biblioteca

José Carlos Fernandes
10/03/2019 20:00
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Foto: Marcelo Andrade/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

Há poucos meses, a jornalista Marleth Silva contou – em sua coluna na Gazeta do Povo – que recebeu de presente um lote de livros, saídos da biblioteca particular do arquiteto Key Imaguire Junior. Brinco com ela que, ao ler, fui assaltado por uma súbita “inveja branca”. Meu estado se agravou ao descobrir a parte que lhe coube daquele latifúndio literário: a estante das crônicas, abastecida, calculo, por mais de 50 anos de escavações feitas pelo proprietário em sebos e livrarias. Rezei uma Salve Rainha para ser incluído na partilha. Fui atendido e aqui cumpro agora o ex-votos que prometi.
A biblioteca do Key é uma das lendas dos pinheirais. Quem a visita tem a sensação de ter entrado numa floresta encantada dos irmãos Grimm. Sua atmosfera oferece tons baixos, mas é serena e cheia de riachos imaginários. Ainda posso ver a cara de duas colegas de redação – Pollianna Milan e Fernanda Trisotto – ao conhecerem o local, anos atrás, a propósito de pautas que tinham a cumprir: “Zeca, eu vi…”, disseram, olhos esbugalhados de desenho animado, boca ainda em salivas, depois de bisbilhotarem o que se escondia depois do lance da escada, nos dois pisos contíguos do sobrado das Mercês, onde o colecionador vive com sua mulher, a também arquiteta Marialba Rocha Gaspar.
O e-mail de Imaguire – perguntando se eu tinha interesse em adotar alguns livros – caiu na minha caixa em 23 de janeiro último. Glória. Trocamos 13 mensagens até acertar a desova – tinha gente na minha frente e coisa e tal. Finalizamos a negociata sem fins lucrativos em 15 de fevereiro. Neste dia entrei para a confraria dos que herdaram um pedacinho da biblioteca privada mais incensada da paróquia. A ideia, diz Key, é enxugar o acervo em 50%, pois está cada vez mais difícil administrar espaço para os novos volumes, que se acotovelam nas estantes, num desafio às leis físicas que regem os objetos.
Fiquei com a parte de contos, humor, fábulas e prosa curta em geral. O lote todo soma 90 títulos. Valem uma vida. Os livros foram publicados nas mais diversas épocas – muitas raridades descansavam nas prateleiras comerciais, à espera de um bibliófilo. Todas trazem nas primeiras páginas o selinho “Ex libris Key Imaguire Júnior. Curitiba”. Os dizeres vêm acompanhados de uma caricatura do proprietário, à vontade no papel de japinha. É a prova do crime. Quem tiver um livro com essa imagem agora faz parte de uma rede concreta porém simbólica de leitores, conceito que entendi, há mais de uma década, ao debulhar o despretensioso Herdando uma biblioteca, do paranaense Miguel Sanches Neto. Ao ponto.
Herdando… é uma coletânea de crônicas que funciona como uma biografia do leitor Miguel Sanches Neto. Texto a texto, o autor – hoje reitor da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) – faz uma espécie de colagem de fatos de sua vida de “não leitor” que, na adolescência, passa a ter uma transa com os livros, os com imagens da anatomia feminina inclusos. Os episódios dispersos na obra explicam como o menino criado na minúscula Peabiru, norte do Paraná, “programado” para as atividades agrícolas e para a repetição de tarefas e de destinos, se torna um aficionado em ficções.
O título do livro funciona como um trompe l’oeil, a tal da ilusão de ótica. Ao contrário do que sugere, Sanches nunca herdou uma biblioteca. Herdou, sim, um único livro, dado pelo dono da sorveteria da cidade – uma Bíblia protestante traduzida por João Ferreira de Almeida. No ambiente católico em que foi criado, a Escritura protestante era um contrabando consentido pela precariedade. Um acaso, mas abalou geral.
Ao longo do tempo, Miguel-desejoso-de-livros passou a comprar em lojas de usados títulos que pertenceram a outras pessoas, sem deixar de prestar atenção nos sinais de por onde aquelas páginas tinham andado. Marcas do tempo e dedicatórias faziam com que ele se sentisse um herdeiro de bibliotecas alheias, sublimando um rito de passagem que lhe foi negado na família em que o cabo de enxada era a mais-valia. O encanto não tardou: na medida em que Sanches se tornou não só um leitor, mas crítico literário e escritor de renome, a Sagrada Escritura de capa preta da sua infância ganhou status de moedinha número 1 do Tio Patinhas. É uma história bonita pra danar.
Conto isso por um simples motivo – durante uns bons anos recolhi narrativas de leitores, para pesquisa acadêmica. Penei para conseguir que abrissem o bico. Em vez de falarem de amores, trabalho, memórias familiares, o escambau, pedia que contassem o que os seduziu para a leitura. Precisava saber como os livros chegaram em suas mãos. Encontrei gente como Key – criado perto das letras –, mas muitos como Miguel, para quem os livros pareciam coisa para os outros. Imigrantes, órfãos de educandários, pequenos jornaleiros, moradores da periferia, marceneiros, caixas de mercado, donas de casa, por aí vai, resistiam à conversa, mas, de tanto eu encher o saco, entregavam o ouro.
No começo, achavam que o entrevistador chatonildo queria medir quantos livros foram lidos, testar erudição, entre outras bobagens que geram estatísticas frias, uma inutilidade em se tratando de sociologia da leitura. Depois entendiam que a “pegada” era saber como romances, poesias e não ficções mudaram a percepção que tinham de si mesmos. Como vestiram outra pele depois de roçarem a língua na língua de um escritor. E que livros foram esses. Podia ser a Bíblia, mas também O Menino do dedo verde, de Maurice Druon, ou Zadig, de Voltaire.
As histórias de leitores, por tabela, acabam desaguando na história de bibliotecas particulares. Existem muitas coleções domésticas, pessoais, cheias de personalidade, grandes e pequenas. E cada vez que uma delas se desfaz – geralmente depois da morte do proprietário – a biografia do dono é esquartejada. Pena. Os livros guardados são um testamento a ser decifrado. Vai estar lá a obra surrada – lida várias vezes, com marginálias repletas de anotações –, mas também o título nunca aberto, ou que revela interesses pouco percebidos mesmo pelos mais próximos do leitor. Tenho certeza de que na minha “hora boa” os meus vão dizer WTF para uma série de guardados da minha biblioteca. Queria tanto assistir…
Lembro, por exemplo, do renomado arqueólogo Oldemar Blasi (1920-2013) carregando nos braços os livros que colecionava sobre Che Guevara. Tadinho, se fosse hoje… Estavam encravados na sua biblioteca de cientista do primeiro escalão. Mostrou-os como um menino que exibia a coleção de Balas Zequinha. Não escondeu que eram um deleite na sua velhice – Che o intrigava. Talvez quisesse ser como ele. Em resumo, há sempre um quê de revelação do último capítulo de novela nos livros que acumulamos.
A propósito, não consigo deixar de pensar que Key dividiu não só seus livros com amigos e conhecidos, mas também seus segredos. Abrir as caixas de papelão é escutar algumas confidências desse homem de fala contida e abafada.
Para colaborar, aconteceu algo curioso. Na manhã que sentei no sofá dos Imaguire, doido para botar a mão no que o dono da casa me prometeu, conversamos sobre amenidades da vida universitária, ponto que temos em comum. Aposentado há quase uma década na UFPR, Key integrava a galeria dos professores amados. As viagens que organizava a Brasília e a Ouro Preto, ou as aulas ao ar livre na Rua XV, marcaram a trajetória acadêmica de pencas de alunos. Falamos das mudanças cada vez mais rápidas de mentalidade na moçada; e da sensação premente de que não conseguimos acompanhar todas as demandas. A vida está uma lenha para os coroas, que dirá para quem recebe de bandeja uma sociedade sem emprego e cujo discurso é o torturante “ninguém está pronto” ou “tem de se reinventar todo dia” – como se fosse possível.
Foi nessa curva da conversa que lhe contei de um dissabor em sala de aula, ocorrido fazia pouco, justo no dia em que explicava o mito de Eros e Psiquê. Em vez de um papo sobre o amor em tempos de polarização, como eu tinha planejado, rolou uma baita DR sobre o que interessa ou não aprender, em meio a tantas revoluções por minuto promovidas pela internet. Foi um dia de fúria. Fiquei com dó de mim. Eros e Psiquê foram rolados da porta para fora.
Passada a narrativa trágica, fizemos mais algumas considerações esparsas sobre as pesquisas internacionais que buscam decifrar o que querem (e o que temem) os jovens – peguei os livros e vim-me embora, conduzido por um taxista arrasado porque sua filha, dentista bem formada, se mandara para a Irlanda, atrás do vento. Ao chegar em casa, já me coçando, puxei das caixas um exemplar a esmo: Antologia da literatura mundial – lendas, fábulas e apólogos, volume IV, editora Logos, de São Paulo. É antigão, capa dura avermelhada, com baixos-relevos. Não tem data, mas meu faro diz que é da década de 1950. Custou “dois pilas” num sebo. Abri numa página qualquer e… ali estava relatado o mito de Eros e Psiquê, a mesma que parecia não dizer nada a meus alunos.
Sabe quando uma coincidência nos tira o sono? Pois é.