José Carlos Fernandes

Livros de presente, a missão

José Carlos Fernandes
23/12/2018 20:00
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Arte: Felipe Lima

Quem é do ramo sabe. Rola nas redes sociais um manifesto para que os brasileiros deem livros de presente de Natal. A força-tarefa visa um help para editoras e livrarias – que assistem ao despencar suicida dos gráficos. Os índices causariam suores em moradores da Groenlândia, taquicardia em zen-budistas: são quatro anos de retração, o que representa menos 30 milhões de exemplares vendidos. Duas das maiores redes de livrarias do país apertam o cinto até o último buraco e negociam dívidas. Em uma década, o mercado editorial encolheu mais de 20%.
Luís Schwarz – CEO da prestigiada editora Companhia das Letras – pede que as casas publicadoras e os donos de postos de venda sejam criativos, que assobiem e chupem cana, dancem a Macarena se preciso for, para atiçar o leitor que dorme de pijama na alma dos consumidores. Marcos da Veiga Pereira – dono da Editora Sextante e presidente do Sindicato Nacional de Editores e Livreiros, a Snel – está entre os que responderam ao apelo de Schwarz. Criou uma corrente na web, na qual um leitor desafia outros quatro, seus amigos, a comprarem livros. É divertido como brincadeira de roda. Mexam-se.
Dia desses, fui desafiado por uma amiga – a jornalista Maria Sandra Gonçalves – a fazer a minha parte: falar de livros e leitura para membros da OAB-PR, por ocasião da inauguração de uma pequena biblioteca anárquica, dessas que é só tirar e pôr um livro no lugar, sem levar pito de ninguém. Fica na sede da instituição, ali onde o Ahú se encontra com o São Lourenço. A iniciativa se soma a dezenas de congêneres em atividade na capital, como a biblioteca da padaria Pote de Mel e a da praça do Omar Shopping.
A plateia da OAB, toda em ternos e tailleurs, era educada e dada a ler – sobretudo processos, petições, ementas, recursos, o diabo, tarefa de estiva que merece o nosso reconhecimento. De modo que o grupo pareceu bem a fim de colher do visitante algumas dicas sobre leituras prazerosas, cujos honorários não podem ser calculados em cifras. É humano. Mesmo assim, suei em bicas diante de tantos doutores. Os tímidos são mártires que morrem em segredo.
Explico a gastura: leitura é daqueles assuntos falsamente fáceis. Tem casca de banana para tudo que é lado. Corre-se o risco de escorregar nas idealizações, pintando leitores como se fossem deuses de um panteão, predestinados e iluminados. Mentira: ler dá um trabalho do caramba, exige fôlego de operário e coragem para fazer escolhas, o que inclui dizer não à Netflix. Nesses discursos pró-leitura, há também o perigo de reproduzir conceitos caducos, ainda propagados pelos professores desavisados, como o de que se deve ler para escrever bem, para ter o que dizer ou, na pior das hipóteses, para combater insônias e maus pensamentos. Bons livros de cabeceira, deve-se dizer, são os que nos mantêm acordados.
Outra cilada – rezar o rosário de que lemos menos que os franceses, que passaríamos vergonha na Escandinávia e seríamos zoados até na Península do Yucatán. Chatice. A medição de “livros por cabeça” foi relativizada faz uma data, pois se mostra incapaz de dar conta da leitura afetiva e da leitura fragmentada – reinante desde que a internet inaugurou o admirável mundo novo de Aldous Huxley.
Mais perigos? Hoje há um cestão de dados disponíveis sobre mercado editorial e leitura, de modo que se pode palestrar sobre o tema com power points ricos, ilustrados e animados por gráficos que parecem saídos dos estúdios da Disney. O erro é transformar um fenômeno psicossocial excitante como a leitura num corpo dissecado de um necrotério, sujeito à lâmina afiada de um bisturi, ao mármore frio dos números.
Restava-me apelar para Roland Barthes, Umberto Eco, Robert Darnton, Alberto Manguel, Carlo Ginzburg, Roger Chartier, Harold Bloom, Michèle Petit – e azedar com uma overdose de teorias o que se pretendia uma festa de inauguração num luminoso fim de tarde. Pecado frustrar aquele monte de gente disposta a ouvir uma história boa para contar em casa, depois do coquetel.
Decidi ser prático e elegante, obediente ao apelo dos editores e livreiros à beira de um ataque de nervos. Quem sabe, botava pilha na audiência e salvava uma livraria de baixar as portas. Às falas, agora repartidas com vocês. Em primeiro lugar, mais do que esganiçar a frase “leiam mais”, o que quase sempre soa como um professoral pé-no-saco, a mensagem é “seja você mesmo um agente de leitura”. Creiam, podemos iniciar ou trazer alguém de volta para os livros, tornando-se, por exemplo, um personal reader, ramo de atividade à espera de regularização.
Tem aquela pessoa que para do nosso lado e diz que está vontade de comer algo diferente, “ai, num-sei… tô doido por algo bem doce”. Bom, em geral, é caso de brigadeiro, de quindim, de uma lata de Leite Moça ou de um strudel. Do mesmo modo, há quem se diga louco “para ler um livro bom”, expressão que se pode traduzir por algo tão gostoso que não se queira largar até chegar à última página, mas não tão fureco que alguém nos tome por ignorantes. A propósito, penso que deveria haver mais personal readers, homens e mulheres ocupados em recomendar leituras.
Eu mesmo encontrei um – o jornalista, editor e pesquisador Irinêo Netto. Um bom personal nunca recomenda literatura específica para iniciados, pois os iniciados sabem o que devem ler. Muito menos receita livro chulé, pois são o treco mais fácil de encontrar, em geral nas melhores gôndolas das livrarias. Seu barato é indicar um título nada óbvio, um achado, e esse achado, vejam só, veste o nosso número, só que a gente não sabia. Nada atiça mais um leitor em potencial do que a suposição de que existe um livro sob medida para ele. Caso o personal não crie essa encenação toda, torna-se obsoleto. Ele existe para ligar a máquina dos desejos do leitor. Ah, esse conceito é do Umberto Eco, mas numa versão soft verão escaldante.
Exercer a função de personal, claro, exige razão, sensibilidade e conhecer, permitam-me, a “pletora” de produtos à disposição no mercado. Pede também entender o freguês, o que é bem mais produtivo que julgá-lo. Alguém pode estar à procura de, sei lá, um pão com banana, e cabe ao agente de leitura lhe sugerir o melhor x-mico da cidade. Simples assim. Um exemplo: graças à recomendação de Irinêo cheguei a um livro como A vida em análise: histórias de amor, mentiras, sofrimento e transformação, do psicanalista Stephen Grosz. A obra estava fora do meu radar – e esse é o encanto. O livro não percebido se torna um oráculo. No mais, rituais para escolher o que ler são tão estimulantes quanto flertar na lanchonete.
Passei mais uma dica – “leiam para alguém”. Explico. Sei que causa estranheza, mas há um sem-número de provas de que, à revelia dos avanços tecnológicos, nascemos para: tomar café da tarde com bolo; tirar uma soneca no sábado à tarde; gastar água no banho pelo menos uma vez por semana; visitar a timeline alheia e… escutar um texto na voz de outra pessoa. Se não fosse tão bom, em casamento cada um fazia o juramento em silêncio. A dicção, as pausas, as entonações – mesmo que primárias – imprimem ao que está escrito uma identidade que não é a nossa, fazendo do texto aquilo que é, um novelo de lã embaralhado pelo gato, tantas vozes cabem nele.
No ramerrame, o melhor exemplo de leitura em voz alta que conheço é de um filme que, maldição, não acho mais nem nas nuvens nem na terra. Em Uma leitora bem particular, de Michel Deville, a deliciosa atriz francesa Miou-Miou põe anúncio no jornal, oferecendo-se para ler em domicílio. É contratada por acamados em geral. Ao vê-la e ouvi-la, acordam para a dimensão erótica da leitura. Em vez de hábito mecânico, a palavra falada vira tudo o que pode ser – convite, manifesto, carta, súplica, segredo, declaração de amor.
Um dia, alguém leu para a gente e foi ali que nossa história de leitor teve início. Leia para alguém – é aí que uma paixão pode recomeçar. Não tem contraindicações.
(Coluna dedicada ao advogado Dálio Zippin Filho, ativista dos direitos humanos que nos deixou esta semana. Palmas para ele.)