José Carlos Fernandes

Maria das Mercês, com a palavra

José Carlos Fernandes
02/12/2018 20:00
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Arte: Felipe Lima/Gazeta do Povo

A pernambucana Maria das Mercês Silva, 69 anos, cresceu sem nunca ter ido à escola. Morria de vontade. Quando menina, no Norte do Paraná – onde foi criada –, fugia de casa para bisbilhotar um colégio das redondezas. Ocupava uma sala vazia e se sentava na carteira, de frente para o quadro-negro. Ali, fingia. No jogo do faz-de-conta, brincava de ser aluna. Levou uns tantos cascudos e relhos por se dar a ilusões. “Lugar de mulher é na cozinha. Mulher não foi feita para estudar”, ditava o pai, voz alguns decibéis acima.
Ao longo das décadas, Maria teve motivos para achar que ele tinha razão. Cozinhou, lavou, trabalhou na roça, deu à luz nove filhos, limpou chão, apanhou, soltou desaforos e deu trocos, pois não faz o tipo servil. A maior parte das brigas, perdeu. Perdeu os pequenos reinos que conquistou, cidades que amou e míseros cortes de tecido – qual uma versão tupi do poema de Elisabeth Bishop. Sua existência parecia reduzida ao polegar, carimbado nos documentos. Até que cansou de sujar o dedo. “Sabe o que não saber ler? É sair de casa para procurar emprego e não conseguir voltar, pois sempre entrava no ônibus errado”.
Eis o que se deu: Maria beirava os 60 anos quando decidiu criar um de seus netos, Felipe. Pegou-o nenê de colo. Logo às primeiras letras, aconteceu o que a avó temia: o menino pediu que ela o ajudasse com a lição de casa. Teve de se declarar analfabeta, para bem da verdade e do boletim. “Peça à professora”, ordenou. E ele obedeceu – pediu à professora um colégio para dona Maria. Foi assim que a mulher baixinha-fortaleza bateu na porta da Escola Municipal Rachel Mader, no bairro Uberaba, levada pela mão do neto. Cena de filme. Ele tinha 7, 8 anos. Ela, 65. Ali – em aulas no noturno – Maria aprendeu a colocar a perninha no “a” e o risquinho do “t”. “Teresa. Esse é o nome da mulher que me ensinou a ler…”
Àquela altura, não era bem a opinião do pai que lhe pesava nas costas – a de que “mulher não foi feita para estudar” –, mas o que lhe havia dito de um de seus filhos: “Ih mãe, papagaio velho não aprende a falar”. Quase acreditou, não fosse um detalhe: descobriu que tem cabeça boa para as letras. Decorou o alfabeto tão rápido que a classe toda a julgou um fenômeno paranormal. Ela não esquece da primeira palavra que leu, sílaba por sílaba. Foi em visita a uma amiga de bairro. Olhou para a placa da rua, como tantas vezes tinha feito, e num estalo decifrou o que estava escrito. “Rua A-BÓ-BO-RA”. Abóbora? Ligou o nome à fruta, sua conhecida de longa data, de plantar, colher, descascar, cozinhar e encher de açúcar. Quem pensou em Paulo Freire gabaritou.
A trajetória da mulher levada para a escola por um guri virou manchete. A primeira reportagem sobre a dupla saiu no G1, assinada pela repórter Adriana Justi. Em seguida, a dupla aterrissou no auditório do Esquenta, da apresentadora Regina Casé, três anos atrás. Rolou sentimento. Regina e Maria se acharam, o que é simples de entender. O encontro tardio de dona Maria com as letras é comovente e se soma ao seu empenho descomunal para criar o neto com os tostões que recebe fazendo faxina. O episódio pode levar às lágrimas, mas também arranca boas gargalhadas: Maria das Mercês é um número. As câmeras gostam dela. Nascia uma estrela.
Divertida, talento de repentista, repertório de lavadeira, ela faz de qualquer episódio banal uma saga. “Pus calçado nos pés pela primeira vez aos 15 anos. Era uma alpargatas de pano, com solado de corda.” Tem táticas de contadora de histórias, mas com “pegada” de cordel. Mesmo quando conta passagens cabeludas ou dramáticas – nas quais é quase sempre a protagonista –, o faz sem nenhuma pena de si mesma. Não é dessas. Também evita demonstrar ressentimentos, ainda que os tenha de rodo. A gente fica arriado. Ao saber da quantidade de fogueiras que ela pulou, é de se arrepender de lamentar a vida. A maioria de nós não suportaria ser dona Maria por uma semana, nem que quisesse. Pois é, do jeito que ela conta, dá vontade até de viajar num pau-de-arara. Ou dormir num colchão de folha de bananeira trançada, “ouvindo o miado dos bichos no meio do mato”. E ainda de botar carrapicho no lenço do cabelo de uma vizinha assanhada, para citar uma de suas peripécias da mocidade. Ela era terrível.
Dá uma tentação danada registrar num livro palavra por palavra, do jeitinho que Maria fala, tão gostoso é escutá-la. Pois uma equipe da Editora Positivo – capitaneada pelas profissionais do livro Jerussa Ramos e Sue Ellen Halmenschlager – não resistiu à tentação e acaba de lançar O saber de Maria, com a reprodução das memórias de Maria das Mercês Silva, a retirante. Ao livro – que já vendeu uma centena de exemplares e faz carreira como paradidático – acompanha um documentário do videomaker Duran Sodré.
Mal saída do prelo – um pão quente –, a obra, permitam, pode ser colocada na estante ao lado do clássico Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus. E ser enviada para a biblioteca do intelectual francês Philippe Lejeune (autor do soberbo O pacto autobiográfico), hábil colecionador de narrativas escritas por anônimos do mundo inteiro. Ao ler O saber de Maria, é como se um personagem de Vidas secas, de Graciliano Ramos, tivesse ganhado uma encarnação. “A gente sentava e pegava um punhadinho de farinha na sacola, jogava com açúcar na palma e comia”, diz ela, sobre a rotina nas lavouras. Por aí vai.
Ao longo de 110 páginas, a cena quase natalina de Maria e Felipe na porta da escola ganha a concorrência de episódios tão ou mais impressionantes. As lembranças de como chegou do sertão do Pernambuco ao Paraná dos cafezais, em meados da década de 1950, é uma apavorante contagem de mortos. Primos e irmãos se foram ao longo da viagem, ganhando cova de indigentes pelo caminho. Os que sobreviveram amargaram três meses de hospital em Cruzeiro do Oeste, acumulando uma dívida paga no cabo da enxada. Ela enumera os seus como se fosse música – Cícero, Cosme, Severino, Maria José, Carminha… “Quando chegou, a gente pegou todas as doenças de uma vez só – bexiga, catapora, tosse comprida, caxumba, sarampo, febre amarela…”. A pobreza era superada em ciclos, passados em terras arrendadas, cafezais floridos e traiçoeiras geadas. A de 1963, descreve com o realismo dos melhores repórteres.
“Se eu tivesse estudado, seria… comerciante”, avisa a aposentada pelo INSS, adepta do transporte por bicicleta e que complementa renda limpando um supermercado da região. Não é exagero dela. Uma das muitas vidas que Maria das Mercês viveu foi no Distrito Federal – “onde aprendi a fazer tijolos”. Tantos que ergueu uma casa, a maior que podia sonhar, e ali “botou”… uma escola de datilografia. Mesmo sem saber ler e escrever, pagava professores para fazê-lo. Suspeito que seja seu capítulo predileto. Mas aconteceu que a roda-viva trouxe a empreendedora de volta às roças paranaenses, e depois à fria Curitiba, onde se tornou uma moradora da Vila Reno, nas cercanias do Bolsão Audi-União.
Eis o ponto. Foi nessa época, quando tudo parecia só mais do mesmo, que se ofereceu para criar o neto Felipe. Pois a chegada dele alterou a sequência de nocautes acumulados por dona Maria, em especial quando confidenciou à professora por que diabos a avó não podia ajudá-lo nas tarefas escolares. Tudo bem – ela não o ajuda muito até hoje. Mas sem culpa. Quando chega do batente, brinca com o cachorro Negão, depois estica as pernas e se agarra a um livro. “É como sair da escuridão”, ilustra. No momento, lê devagarinho O diário de um banana, série do cartunista norte-americano Jeff Kinney. Depois, se permite um dos prazeres descobertos na velhice: os “caça-palavras”. Recomenda.