José Carlos Fernandes

Não contem com o fim dos livros

José Carlos Fernandes
19/08/2018 20:00
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Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

A quem interessar possa – o livro não morreu. Esse objeto dos deuses ainda faz cócegas numa pá de gente. E, como profetizou o semiólogo Umberto Eco, com uma banana pros idiotas digitais, “não contem com o fim dos livros”. Pelo menos assim professam os que se unem em movimento para tirar a leitura analógica da solitária em que insistem colocá-la. Tudo bem – a turma da reação ainda não tem um manifesto nem grita palavras de ordem. Tampouco se autodenomina uma startup. Não é levada a sério pelo Banco Mundial (que só fala bosta quando se mete no assunto, aliás) ou pela maioria dos candidatos ao poder. Mas o povo da leitura anda arisco. Não desdenhem.
Os clubes de leitura – “que coisa antiga” – viraram um fenômeno em escala cósmica. Clubes do livro como a TAG, igualmente. Os saraus literários perderam o cheiro de naftalina e oxigenam mentes sequestradas pela lógica diabólica da audiência. Deixaram de ser passado, pondo a moçada na arena, para falar em verso e prosa. Nesses espaços, há suor e isso faz toda a diferença. No mais, pencas de braços trabalham para que os livros saiam do sepulcro das estantes, ganhem asas e encontrem novos leitores. Há sempre uma livraria anárquica, numa padaria, estacionamento ou num bar, cheia de amor e de livros para dar. Se não é um movimento agora, no futuro alguém assim há de chamá-lo.
Os números do mercado editorial até podem não ser um vinho das melhores safras. Mas, a contar pelo estado das coisas, o saldo não é de se jogar no lixo. Há sinais de fumaça por aí. As editoras alternativas, por exemplo, andam dando sardela nos maiorais – acompanhem o caso das nanicas publicadoras Lote 32, Nós e Casa Paratodoxs. E não passa um dia sem que o Blog do Galeno – verdadeiro catálogo de boas notícias sobre a economia da leitura – informe como alguém, nesse Brasil cheio de calos, alça uma vitória no campo das letras. Tudo no melhor estilo “de grão em grão”. Quero acreditar.
No início do mês de agosto, a vez foi de Curitiba, a fria. Dia 8, em solenidade sem pompa, nasceu na Biblioteca Pública a Associação da Leitura e da Escrita do Paraná, ou apenas Ler.com. Não tem segredo. O grupo agrega uma centena de leitores e pesquisadores de práticas de leitura. Alguns deles, mais afoitos, se dividem em diferentes 17 áreas de leitura, a postos para dar pitacos a professores, líderes comunitários, gestores, religiosos – quem quiser. Pode-se aprender a ler mais e a ler melhor, um empurrãozinho não faz mal a ninguém. E claro – bons óculos, boa vontade e um lugar para sentar também ajudam.
Qualquer um está livre para recorrer à Ler.com. É um ato político. Mesmo que os tecnocratas desconfiem, e peçam evidências estatísticas, a leitura (a literária, inclusive) incide sobre o desenvolvimento, mesmo que não seja esse o seu objetivo. Daí todo tipo de leitura valer a pena. Na Ler.com há apoio para quem esteja interessado em desenvolver leitura de filmes, fazer conexões entre leitura e sociologia ou nada mais do que melhorar a leitura das crianças. Quem sabe, em segredo, achar um incentivo para voltar a ler depois de se dar conta de que o oceano digital pode ser um veneno para a vida do espírito, como alertaram os bambas Andrew Keen (O culto do amador) e Nicholas Carr (A geração artificial). A propósito, a iniciativa é da pesquisadora, tradutora e professora universitária catarinense Lúcia Cherem.
Não é de hoje a militância de Lúcia em prol do livro e da leitura. Ela tem no currículo a Ação Integrada para o Letramento, projeto que mobiliza gregos e troianos da UFPR. O grupo oferece oficinas, por leva, a 170 professores das redes municipais e estaduais de ensino. Nos bastidores do programa, Lúcia e as pessoas que cativou enfrentam toda sorte de desafios. Volta e meia batem à porta educadores à beira de um ataque de nervos. Seus alunos não entendem o que leem, muitas vezes às vésperas de acabar o ensino médio. As teorias ajudam. Os laboratórios desenvolvidos nesses encontros, muito mais.
Foi a bordo da estiva de auxiliar educadores que Lúcia acalantou o criar a Ler.com. Lá pelas tantas, entendeu que devia atuar “fora dos muros”, corpo a corpo com leitores comuns, aqueles que ardem de desejo, como na música Senhas, da Adriana Calcanhotto. “Precisava escutar o que diz aquele que lê”, resume. Mais. Queria comprar passagem para um mundo com menos nota de rodapé, menos citação entre parênteses e mais experimentação. Pôs tudo no papel. Foi em 2013, ano da primeira dentição da associação.
Não tardou entender que tinha de deixar a ideia de molho, até se aposentar da UFPR. No intervalo, seguiu propagando seu ideário. Confidenciou os planos aos amigos e conhecidos, arrebanhou adesões em tudo que é divisa e paróquia. Estratégia perfeita. Ano passado, tinha não só uma comunidade leitora, pronta para sair com ela de braço dado, como um estatuto escrito a várias mãos. Hoje o Ler.com não é só da Lúcia. Nem só de Curitiba.
Uma das trupes coladas ao projeto é a Association Française pour la Lecture, a AFL, na figura de Jean Foucambert (autor de Modos de ser leitor). De outras lavras europeias, ativistas da leitura deram de flanar pelas ruas da capital paranaense, paripassu com as fundadoras da Ler.com. Um deles, Jean Foucault, morou um ano na cidade. Esses franceses amam fazer colóquios sobre leitura nos trópicos, se é que a gente merece essa deferência geográfica. Encantam-se com tudo o que se pode plantar em terras brazucas. Foi da turma da AFL que Cherem emprestou o slogan que repete como um mantra: “É junto que a gente aprende a ler sozinho”.
A frase serve como uma luva, afinal ainda é comum flagrar conceitos bocejantes de leitura, ensinados como se fossem as Tábuas da Lei. Exemplo? Ler para escrever bem. Ler para ter o que dizer. Ler para ser uma pessoa melhor – o que não faz sentido, pois a gente pode descobrir a Emma Bovary que mora em nós. Em tempo – esse chacoalhão federal não é meu, mas do mestre Harold Bloom num texto essencial chamado Como e por que ler. Por fim, nem conto – tempos atrás uma famosa apresentadora de tevê disse que ler é bom para dormir. Só se for para boi dormir. Leitura porreta – se bem entendo – é para deixar acordado. Some-se à lista de heresias a “leitura valendo nota”, o treco mais anticlímax que (grifo meu, rs) os não leitores ou leitores frígidos inventaram.
De todas essas platitudes, talvez a mais nociva seja a que relaciona leitura com solidão. Assustador para os que têm medo de escuro e brasileiros em geral. Somos parte de uma tradição que ama o coletivo. Teu fim de semana? “Eu, a Rê, o Fê, a Ju, o Teco…” Saravá para a mania de colocar a leitura próxima dos transtornos obsessivos ou coisa que valha. “Ler é compartihamento”, frisa Lúcia.  “Ler é ação. O ‘com’ da associação está ali para dizer isso. Ler não tem nada a ver com atividade passiva”, reforça a doutoranda em Letras Diamila Medeiros, 30 anos.
Diamila é paulista de Lins, estudiosa de poesia brasileira, oriunda do lindo projeto Curitiba Lê, da Fundação Cultural. Ex-aluna de Lúcia, entregou-se à tribo dos entusiastas ainda na graduação e hoje preside a Ler.com, em parceria com a professora Maria Inês Carvalho Correia. A dupla de coordenadoras, os franceses e quem mais esteja se filiando à Ler.com só vem a confirmar que a terra se move. Ninguém lê impunemente. Quem prova dessa alquimia tende a romper o silêncio.
Um dos melhores capítulos do momento – me permitam – é ouvir histórias de leitores, que brotam no calor da hora. Amores, perdas, trabalhos, tragédias pontuam nossas bigrafias. Mas também o livro que lemos. Lúcia e Diamila, a propósito, têm em comum a descoberta de Clarice Lispector, ainda na adolescência. Foram cooptadas pelo que o crítico Léo Gilson Ribeiro chegou a definir como uma espécie de bruxaria. “Eu me curei quando fiz uma tese sobre ela”, brinca Lúcia, sobre o livro As duas Clarices entre a Europa e a América. “Mas foi lendo Grande sertão, do Guimarães Rosa, que desisti da faculdade de Economia”, conta Diamila, lá pelas tantas da roda.
Experimente, caro leitor, listar o livro do dia e da hora que sua vida virou de canelas para o ar. E seja bem-vindo ao clube.