José Carlos Fernandes

Ninguém solta a mão de ninguém

José Carlos Fernandes
04/11/2018 20:00
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Arte: Felipe Lima Mayerle/Thapcom, sobre obra de Henri Matisse

Em meio às tensões do domingo passado – quando o capitão reformado do Exército Jair Bolsonaro (PSL) saiu eleito presidente do Brasil – a poesia encontrou sua brecha. Um post na internet, com uma ilustração de mãos entrelaçadas, trazia os dizeres: “Ninguém solta a mão de ninguém”. É de autoria da tatuadora mineira Thereza Nardelli. A frase – dita pela mãe de Thereza – está cravada no imaginário, feito um gatilho [palavra em alta] acionado diante do perigo. Calculo que para uma pá de gente possa não ter passado de um jogo de cena, mais um mimimi barato. Para quem está perto dos que se sentem ameaçados, um manifesto à solidariedade mínima, de efeito máximo.
Uma parcela de mulheres, homossexuais e negros brasileiros sentiu lhes faltar o chão na campanha eleitoral de 2018. Logo após o primeiro turno, vi jovens aos prantos. Nascidos no final dos anos 1990, início dos 2000, foram criados em meio a um paradoxo: são inibidos pela violência, mas cresceram fora do armário. E não me refiro apenas à sexualidade. Usam a cor de tênis que desejam. Os cabelos azuis – fauvistas do século 21. Assumem o peso que têm. Arrisco dizer que – apoiados por suas famílias – muitos não tinham sentido a mão pesada dos covardes. “O nosso filme era o Rambo, né. O deles não”, disse-me um jornalista que admiro, nascido numa geração anterior à que hoje se sente com as mãos para o alto, recostados a um paredão.
Difícil ignorar que houve um estímulo à agressão, liberando o desejo reprimido de gritar palavras como “vagabunda”, “viado” e “negrada”. É um fenômeno, salvo engano, que ainda não estamos prontos para entender – tão próximo está e tão sujeito a justificativas simplórias, de ambos os lados. E já se começa a soprar as feridas. Reparem na quantidade de gente que alega, por exemplo, ter um “gay de estimação” – um primo, um tio, um coiffeur. Ou uma ex-namorada disposta a registrar em cartório o atestado de delicadeza dos machões. Fora os que recorrem aos agregados negros “lá de casa”, “criados como irmão”. Uma jovem que conheço não voltou para a faculdade, pois tem medo de andar nas ruas de Curitiba. E olhe que ela é de Joinville, branca, bem vestida. Medo é projeção? Que tal ir catar coquinho no asfalto.
Impressionou o relato de estudantes negros da Universidade Mackenzie – que deixaram de ir às aulas depois do vídeo de teor racista de um dos colegas. Pedro Bellintani Balleotti, de 25 anos, pediu desculpas públicas. Dia desses, um Uber, negro de 30 e poucos anos, com curso superior, não segurou a onda e aproveitou a viagem para um desabafo. Me disse assim: “Sabe o que é ser negro no Brasil? É sentir o tempo todo que você foi a um casamento com a roupa errada. Só que a roupa é o corpo da gente.” Relatei o episódio a alguns alunos – assegurando que se sentissem livres para enviá-los à deputada estadual catarinense Ana Caroline Campagnolo, caso o desejassem. Rimos de nervoso. “Ninguém solta a mão de ninguém”.
O momento é de estimular a lucidez, o exercício do pensamento, ações de cidadania e o estar junto – o que no frigir dos ovos pode ser um saldo positivo em meio à crise de imagem que as eleições deixaram. O brasileiro “gente boa”, “bacana” e “tolerante” parece ter virado a lenda do Saci Pererê. Mas essa sensação pode não passar de um autoengano. Explico.
Em meio ao “quase” flashmob, que sugeriu que os eleitores levassem livros para as sessões de votação, botei a mão num dos títulos que – reza o clichê – carregaria para uma ilha deserta. Trata-se do ensaio Diante da dor dos outros, livro seminal da norte-americana Susan Sontag, morta em 2004. Espécie de testamento – Sontag estava num estágio avançado de câncer – a obra afirma, grosso modo, que a maioria das pessoas não é insensível. Faz sentido – o gostar, o afeto, a compaixão são da nossa natureza e uma condição para a sobrevivência. Acontece que a complexidade do mundo faz com que nos sintamos impotentes – e a impotência é um sentimento dado a disfarces, não raro cruéis.
Pois é. Mas não fui às urnas trajando Sontag. Pensei em ir de A invenção do cotidiano, de Michel de Certeau, um daqueles livros que dá algum sentido ao dia seguinte. É batata que nesse momento alguma batalha ideológica está sendo saneada pelo abraço, pelo pequeno gesto que torna melhor o espaço em que nos sentimos mais potentes – a casa, a vizinhança, a calçada que nos leva à padaria. Ainda assim, não foi Certeau o escolhido. Nem Trópicos utópicos, mais um exercício de lucidez de Eduardo Giannetti. Preferi Sobre a tirania – vinte lições do século XX para o presente, do historiador da Universidade de Yale, Timothy Snyder. Trata-se de um manual, despretensioso, desses que cabem no bolso traseiro da calça. Não sei se foi dele que as três mesárias da minha seção riram em coro ou da minha bunda. Morrerei na dúvida.
Levei na esportiva – carregar um livro faz a gente se sentir mais seguro, longe de um gesto de arrogância, como se chegou a vomitar na ocasião. Mandar às favas quem se dá ao trabalho de estudar é uma das mais tinhosas facetas neopopulistas. Peço a todos os deuses que não vingue a praga do anti-intelectualismo – hoje objeto de estudos do cientista político Jan-Werner Müller, da Universidade de Princeton, entre outros que estão com a orelha em pé. No mais, foi um refresco conferir os livros que muitos eleitores… elegeram.
Adoraria ter lembrado de Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal, de Hannah Arendt, carregado por uma colega de ofício. Minha irmã Clarice – professora da rede pública – levou o romance gráfico Maus – a história de um sobrevivente, de Art Spiegelman. Foi um dos livros que comprou a sua filha polaca, hoje adolescente, e trata da luta de um judeu polonês em meio ao Holocausto. A lista que chegou à minha rede é soberba e mereceria um estudo da Marta Morais da Costa, nessa decana em questões de leitura. Foram escolhas afetivas – feitas com o intuito de rebater o insano discurso belicista instalado no pleito. Pode soar tão ingênuo quanto a ativista que apontou uma margarida contra uma fileira de soldados armados, em meio aos movimentos de 1968. Mas não se apagará. Aceito fazer apostas.
A quem interessar possa, em Sobre a tirania, Timothy Snyder pratica, perdoem a heresia, uma espécie de autoajuda. São 20 dicas para tempos difíceis, alçadas com base na experiência adquirida no correr de duas guerras e catataus. Snyder estimula a não obedecer, assim, “de bobeira”, e o topete. Mas, sobretudo, recomenda atitudes vigilantes: assumir nossa responsabilidade com o destino do mundo, primar pela verdade e pela investigação dos fatos antes de se descabelar, defender as instituições, conversar sobre assuntos que não apenas política, falar pessoalmente, conhecer gente de outros países e manter a calma naquela hora em que as pernas ficam bambas e o coração disparado.
Para surpresa, o espírito de Snyder parece ter se propagado por esses dias. O filósofo Pablo Ortellado, da USP, por exemplo, recomenda resistir, mas também escutar os que resolveram nos virar as costas. Em miúdos, entender “o que dizem com o que estão dizendo (grifo meu)”. Mais. O brasileiro Fernando Bizzarro – vinculado à Universidade de Harvard – listou nove ações que qualquer um pode tomar em prol da civilidade. Uma delas – divulgar “em tudo que é lugar” os benefícios da democracia, entre eles o pacifismo e a prosperidade econômica; não se perder em picuinhas, agarrando-se à tarefa de construir pontes duradouras, proteger a imprensa, cultivar a participação social e o respeito às diferenças. Bizzarro conclama a procurar as rachaduras nos muros – bela metáfora – e a ter peito. A coragem é contagiosa.