José Carlos Fernandes

O avental todo sujo de ovo

José Carlos Fernandes
12/05/2019 11:00
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Ilustração: Felipe Lima

Amigos leitores, a situação anda tão encardida que dá um escrúpulo danado falar de si mesmo. Abaixo o umbigo. Tem tanta realidade pedindo para ficar pelada, né. Parece alienação. E vai ver que é. De qualquer modo, faz uns três dias que não me sai da cabeça uma música cantada no jardim de infância: “Mamãe, mamãe, mamãe… o avental todo sujo de ovo… o chinelo na mão… Ela é a dona de tudo, ela é a rainha do lar…”
Era ensaiada em maio e nem é preciso dizer mais. É autoexplicativo.
Para surpresa, dia desses perguntei a não sei quem se já tinha ouvido – e entoado essa canção, em coro, a plenos pulmões, rosto encharcado. Ao seu lado, a cena inesquecível: os coleguinhas de guarda-pó xadrez, mãozinhas sujas de Mirabel fazendo pontos siderais no verso “ela vale mais para mim, QUE O CÉU, QUE A TERRA, QUE O MAR”.
Pois a resposta foi “não”, “não sei do que se trata”, ou “que música patriarcal”. Não me dei por contente. A dúvida virou uma enquete, com resultado de 100% de negativas entre os mais jovens e 50% de cara de paisagem entre os mais velhos. De modo que a estatística não mente: ninguém mais canta “ela é a palavra mais linda, que um dia o poeta escreveu. Ela é o tesouro que o pobre das mãos do Senhor recebeu… Mamãe, mamãe, mamãe…”
A música saiu de moda por motivos óbvios. Os tempos mudaram, mais ou menos com o mesmo impacto dos meteoros que dizimaram os dinos. A imagem da “rainha do lar” – cujo manto é um avental pintado de amarelo, tantas gemas espirradas na beira do fogão – não corresponde mais aos fatos. Digo isso coberto de temores, pois vai lá que essa conversa vire uma ideia fora do lugar – mais uma – e “Mamãe” volte às paradas do sucesso, sendo adotada, inclusive, como hino oficial dos lares brasileiros.
De qualquer modo, longe de nós relegar uma pérola da cultura ao esquecimento, apesar de ser apelativa, chorosa e grudenta. A propósito composição foi um sucesso de dois bambas da música brasileira – Herivelto Martins, que na vida real viveu entre tapas e beijos com a mamãe de seus filhos, a cantora Dalva de Oliveira; e de David Nasser, jornalista da revista Cruzeiro, dono de imaginação fértil e moral duvidosa. Traduzindo – tinha sua grandeza, sabe-se, mas era chegado numa fake news. Nem todos o amavam como ele julgava merecer, e como ambiente de redação não perdoa, ganhou o apelido de “cobra criada”. Tudo bem, outro marco da sua época, Joel Silveira, era conhecido como “víbora”.
Voltemos a “Mamãe”. No mais alto degrau da fama, a canção ganhou uma interpretação de Ângela Maria e outra de Agnaldo Timóteo – o que lhe garantiu, nos dois casos, todos os trinados e veludos que fizeram o tal “chinelo na mão” parecer uma tragédia do quilate de Édipo ou Antígona. Tempos depois, quando deixava de ser cantada na escola, ganhou uma versão mais aquarelada do cantor e compositor Toquinho. Dá para cantar como se fosse brincadeira de roda. Está no YouTube e pode ser acessada no almoço deste domingo, sem contra indicações emocionais. Bacana. Cai bem na voz do intérprete a frase “ela é a palavra mais linda, que um dia o poeta escreveu.” Toquinho lembra Vinícius que nos lembra que tudo poderia ser melhor – ainda que, suspeito, não haveria lugar para um Vinícius de Moraes hoje em dia. Não sou eu quem diz, mas o Chico Buarque.
Bom… falar de mãe é difícil pacas, porque aquela nos pariu é sempre merecedora dos melhores elogios. De modo que para não repetir o que todo mundo já sabe – em especial sobre a minha genitora, popularíssima, abraçada e amada por tanta gente que mal sobra para mim – pensei em contar algumas coisas inesperadas sobre ela. A intenção não é capitalizar a mãe, mas estimulá-lo, caro leitor, a fazer as mesmas inconfidências. Minha provocação: em qual segredo está escondida a identidade da sua mãe?
Por onde começo? Chama-se Judite. Não sei dizer o dia em que entendi que minha mãe era uma mulher. Mas tenho uma vaga lembrança. No início do primário, um coleguinha de classe – meu amigo nos verdes anos – sofreu um acidente de arrepiar os cabelos. Foi numa chácara e sofreu rasgaduras na pele por arame farpado. Não veio à aula por semanas. De repente, alguém bateu à porta. Era ela… a mãe do guri. Lembro que usava um vestido escuro, tinha uma longa trança negra, que colocava do lado, como as personagens dos contos de fadas. Era bela. Ficamos todos apaixonados por um minuto e meio. Talvez poucos de nós – alunos de uma escola pública de bairro – tivéssemos uma mãe – senão tão bonita – tão bem arrumada.
Reparei mais na minha a partir de então – já no café da manhã. Percebi seus olhos azuis, os cabelos claros cheios de cachos que lhe caíam ao ombro. E o sorriso perfeito. Quando sorria, era como se de repente todas as luzes do lustre tivessem sido acesas. Não sei se é fantasia, mas acho que por causa da mãe do meu amigo entendi que Judite não existia apenas para trincar ovos na beira da frigideira. Quanto ao chinelo na mão, não estava entre seus esportes preferidos. Uma das minhas irmãs jura que levou umas palmadas no tanque, com a torneira aberta – recurso de antigamente, usado para dar mais dramaticidade à cena. Mas não vi, não foi comigo e há controvérsias.
De 1964 para cá, mama e eu pulamos algumas fogueiras juntos. E como todo filho babão, adoraria escrever um livro a respeito de seus feitos cotidianos – em especial sobre as conversas que mantém com a divindade, tarde de noite, pois detesta ir para a cama cedo. Sua Bíblia está sempre cheia de papéis – com intenções e pedidos de gente desesperada, cujo conteúdo ela repassa todo santo dia à bagunçada e burocrática repartição celestial. Mas tratar desse assunto exigiria uma summa espiritual. Vamos a questões mais mundanas, que é para combinar com o macarrão e a maionese do almoço.
Certa feita – eu adolescente, estudante de um seminário católico no interior de São Paulo – recebi a primeira visita dela. Foi um acontecimento. Meus 70 e tantos colegas de claustro deviam estar se acabando de saudades de suas santas mãezinhas, que viviam em estados como Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul… E o único espécime mais perto do que desejavam era aquela recém-chegada. Como adora dar presentes, trouxe sacoladas de Sonhos de Valsa, que distribuiu sem fazer miséria. Festa.
O povo gostou tanto dela que, madrugada adentro, um grupo se levantou e foi à janela do quarto onde dormia, fazer-lhe serenata. Cantaram “Luar do Sertão”, “Menino de Braçanã”, “Saudades de Matão”, entre outros clássicos das serestas, quesito no qual os paulistas são imbatíveis. Detalhe – não me chamaram para cantar junto. Magoei. De manhã estava toda contente com o que julga, ainda hoje, o presente mais bacana que recebeu na vida. A propósito, agradeceu a todos os seresteiros distribuindo chocolates reserva, nas madrugadas estreladas de Rio Claro, a Cidade Azul.
Quanto a mim – achei que me julgaram tão desafinado que minha mãe poderia maldizer o dia em que nasci, caso me visse ali, a bordo de um solo desastrado. Revelaria, envergonhada, que bati a cabeça na quina da mesa. Ou que puxei a família do pai, uma gente com calos na garganta. Daí o “desconvite” – para evitar o embaraço. Anos depois, superei – entendi que o pessoal ficou tão encantado por ela quanto eu pela mãe do meu colega. Cresci assim, observando a paixão que dona Judite desperta. E lhe entregando lembranças que todos recomendam quando me encontram. “Abraço na mãe. Ela é tão engraçadinha”.
Outra? Essa talvez eu nem saiba contar direito. Houve um aniversário dela que caiu numa semana de tempestades no meu trabalho. Penso que estou cansado até hoje daqueles expedientes de 50 páginas semanais de cadernos de cultura na Gazeta do Povo. No lembrete do lado do computador, a frase “ligar mãe”. Lá pelas 18-19 horas, o dia das bodas quase indo embora, toca o telefone na mesa da redação. Era ela – facilitando minha crise de consciência, a síndrome do filho ingrato. Não era cobrança nem nada. Não houve chantagem. “Você deve estar sem tempo pra ligar”, disse, liberando-me para parabenizá-la. Fizemos a celebração ali mesmo, pelos fios. Nunca tocou no assunto, não esboçou mágoa e, se bem conheço, rememorou em segredo a serenata e os chocolates que distribuiu para a piazada, tantos anos atrás. A pessoa é para o que nasce.