José Carlos Fernandes

Por uma teoria da bicicleta

José Carlos Fernandes
31/03/2019 21:00
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Felipe Lima

Anos atrás, durante uma pequena série de reportagens sobre a história da bike em Curitiba, perguntei ao veterano Reinaldo Hain – dono da loja Agência Bicicleta, na frente da “Praça do Homem Nu” – porque continuava na ativa. Bem podia se aposentar, em nome das sete décadas de serviços prestados. A agência é de 1944 e teve picos de 12 mil unidades comercializadas por ano. Calcula-se, por alto, ter vendido pelo menos 600 mil peças. A resposta veio num suspiro: “Porque nada paga a alegria de ver uma criança escolhendo sua primeira bicicleta…”
A fala de seu Reinaldo – com folga um dos sujeitos mais simpáticos da redondeza – é boa o bastante para sacolejar as memórias do sótão. Passem na loja, comprovem e aproveitem para conferir os retratos em branco-e-preto nas paredes. Ou os livros-caixa manuscritos com caneta tinteiro, dos tempos da vovó-criancinha, no qual aparecem os nomes das famílias mais conhecidas de CWB, todas freguesas dos Hain.
No ranking das melhores lembranças, a primeira bicicleta equivale, digamos, ao primeiro beijo, ao primeiro banho de mar, à primeira… (complete a gosto). Devíamos fazer uma roda em torno da fogueira para partilhar essas passagens que são “prazer da pura percepção”, como escreveu o poeta Leminski. No meu caso, permitam, a primeira bike veio tarde para a média nacional. Contava 10 anos de idade e conquistei-a como prêmio num álbum de figurinhas. Não alcancei a proeza sozinho, mas com duas sócias, minhas irmãs. O uso compartilhado exigia negociações dignas da Força de Paz da ONU. Guerra. Sobrevivemos.
Detalhe – a peça dada pelos organizadores do álbum vinha pintada num cor-de-rosa categoria “noites na discoteca”. Merecia uma música tema, “Cor-de-rosa Choque”, da Rita Lee. Fosse hoje, eu teria de ser salvo pela ministra Damares Alves. Adianto que, à época, aquele exotismo psicodélico parecia natural e não causou escândalo na conservadora Água Verde. As Calois, a propósito, também eram um escândalo de design: tinham um azul fusca tão forte que, suspeito, podiam causar cegueira ao receberem a luz do sol. Discretas, só as Monarks.
Devo contar que a duas rodas da minha infância era da marca Wolf, comercializada por ninguém menos do que … Reinaldo Hain, da Agência Bicicleta. Vim a saber disso ao entrevistá-lo, 40 anos depois da vitória acachapante num álbum de figurinhas, motivo de inveja na vizinhança. A essa altura, a bike rosa habitava o passado, desbotada e corroída pela maresia. A última vez que a vi foi no sumidouro do horizonte, na Praia de Leste, quando foi dada por meu pai a um pedreiro da região. Virou pagamento por algum bico – mas a alegria pueril que proporcionou, perdoem a pieguice, está acima de qualquer troco. Pois é.
Investigar produção, venda e uso de bicicletas está longe de ser uma banalidade; um revirar tolo das lembranças – para dar algum brilho à falta de graça do presente. Bem cabe às bikes um daqueles maravilhosos capítulos da História da Vida Privada, nos quais é permitido tratar da revolução cotidiana causada por roupas, objetos de higiene, mobiliário, livros… Na aparência, o tema pode não passar de um trecho da redação “minhas férias”. Em profundidade, equivale a uma panorâmica pelo desejo da humanidade em se mover por força das próprias pernas.
Bicicletas são tapetes mágicos. No final do século 19, por exemplo, tiveram peso nas primeiras lutas pela emancipação feminina. Havia quem se horrorizasse ao ver mulheres – com espartilhos e polainas – à frente de um guidão, no sobe e desce do selim, indo para onde quisessem, sem escrúpulos de colocar o corpo em sacolejo. Que se danassem quem achasse ruim. Ainda hoje, são um desacato à caretice as gurias que enfrentam a macheza do trânsito com a força dos pedais.
Mais – os 200 anos da bicicleta, comemorados em 2017, sob as bênção de seu inventor, Karl Friedrich Christian Ludwig Drais von Sauerbronn, o “são” Karl Drais, nos fizeram perceber como as bikes influenciaram na prática do lazer, no transporte de operários e na resistência à degradação dos espaços urbanos. Sua relação com a melhora qualitativa das cidades impressiona. Quem discorda é porque nunca prestou atenção, por exemplo, nos benefícios que as ciclovias trouxeram à Colômbia, ao se reerguer dos estragos do narcotráfico comandado por Pablo Escobar. Em resposta à violência sistêmica, a prefeitura pavimentou pistas para ciclistas, o melhor caminho para tirar jovens do isolamento das comunas.
E pensar que tantas sociedades, como a brasileira, demoraram uma eternidade para sacar o vigor do “elemento bike”. Sem dizer que trabalharam contra ela, feitos cruzados ensandecidos, para não usar outra expressão da moda. Ao folhear páginas amareladas do jornal Gazeta do Povo, para uma pesquisa, encontrei uma dezena de relatos sobre os maus-bofes dos motoristas de carro a cada vez que uma bicicleta pintava na rua. Gerava faniquito coletivo. Buzinaço e xingamentos explícitos aos ciclistas eram moeda corrente em Curitiba.
O grosso dessa contenda se deu na década de 1960, quando um movimento silencioso de discriminação baniu para a Terra do Nunca aqueles que pedalavam para ir ao trabalho. Deve ter sido parecido em outros lugares. Bingo – ocupar o espaço público com duas rodas era “coisa de pobre”, expressão que escancara o maior dos preconceitos brasileiros. Condutores de DKWs-Vemag, Itamaratis, Simkas, Fuscas, Kombis e Jeeps não sossegaram enquanto não espantaram a brava gente que enfrentava chuva e frio a bordo de uma bicicleta.
À medida em que os automóveis foram se popularizando, depois do boom dos anos JK, os “50 anos em 5”, mais e mais cresceu a animosidade. Luta de classes? Luta de casses. Não há estatísticas – ou pelo menos estatísticas seguras. O fato é que à medida que a indústria produzia em quantidade maior, as bikes deixaram de ser objetos de luxo – própria de jovens da classe média, que faziam corridas em torno da Praça Rui Barbosa, nas manhãs de domingo – e chegaram aos operários. Não poucos deixaram a carroceria do caminhão que os levavam à zona industrial do Rebouças, assim que compravam uma bicicleta de segunda mão. Quem sabe uma Krons. Com sorte uma AGBS. Foi um fenômeno de mobilidade. A turma do carro não perdoou a empáfia. E acelerou.
É curioso. Nas páginas dos jornais, enquetes mostravam a população vendo a bicicleta como um perigo, tamanha a incidência de acidentes e o estorvo aos motoristas, tadinhos. O argumento era que as bikes nos denunciavam: éramos uma cidade atrasada. Nem os modelos de bike com carregador na frente, usados por empresas tradicionais, como a João Haupt, para fazer entrega, escaparam à ira dos descontentes.
Na década de 1980, quando as ciclovias começam a formar a malha que ultrapassa os cem quilômetros de hoje, as bikes voltaram, mas como distração, não como equipamento para chegar ao serviço ou à escola. Prova disso é que as ciclovias foram, até cinco anos, espaços de lazer – uma zona livre para pais acompanharem a criançada que ainda precisa das rodinhas de trás para não se estatelar no chão. A pressão das bicicletadas e da moçada que bebeu nas fontes de Amsterdã e de Copenhague inverteu a equação. As ciclofaixas – à revelia da sanha dos caretas – deram de se tornar um fato. Não tem político que não trema na base diante do cicloativismo. Essa grita é uma boa notícia.
Em tempo. Quem se aventurar a escrever sobre a cidade, a partir de suas relações com as bicicletas, há de se fartar. São de encher os olhos as fotografias feitas em 1940 pelo viajante tcheco Vladimir Kozák, para a National Geographic: imagens captadas na periferia mostram meninos pedalando bikes construídas com madeira, prova do quanto “uma de verdade” era um objeto de desejo. O álbum de retratos da capital é de fato rico. Para além da finesse das sociedades étnicas – que tinham nos clubes de ciclistas uma distinção –, há registros de praças, como a do “Gaúcho”, ao lado Cemitério Municipal, tomada por ciclistas, nos idos de 1953. Ah, é um barato a foto da Pracinha do Novo Mundo transformada num estacionamento à Holanda, 60 anos atrás. Os ciclistas dos bairros mais distantes deixavam ali suas bicicletas e corriam para pegar o bonde. Moravam no futuro e não sabiam.