José Carlos Fernandes

Réquiem para um homem bom

José Carlos Fernandes
07/10/2018 19:00
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Foto: Antonio Costa/Arquivo Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

Há duas semanas, boa parte dos 6,5 mil moradores do mais conhecido reduto popular de Curitiba – a Vila das Torres – não dormiu à noite. Nada a ver com os motivos mecanicamente associados à comunidade: tiroteio, arbitrariedade policial, maus-bofes de traficantes da Turma de Cima e Turma de Baixo; ou manifestação pedindo segurança, na base do grito e do pneu queimado, no meio da avenida. O povo da vila varou uma madrugada e mais um dia inteiro para ir a um velório, o velório de José Francisco Anchieta Sanches, 57 anos, o “Baleia”, um santo cívico.
Amigos, vizinhos, parentes e admiradores choraram o morto como há muito não se via. “Era um homem bom”, repetem, boquiabertos com o passamento. “O Baleia morreu do coração”, dizem, atentos à ambiguidade da frase. Foi tudo sem mandar aviso, um capricho do destino. Em uma semana os médicos lhe identificaram um câncer irreversível no aparelho digestivo. O paciente logo entendeu que não se tratava de uma úlcera, como pensava, qual um doente imaginário. Vinha cuidando da chaga em vão, com doses de Omeprazol em jejum e comidas sem sabor, intercalada pelos pecados da carne, sua tentação: picanhas, mignons e chuletas no ponto. Ao deduzir que o diagnóstico era severo, resiliente, começou dali mesmo, do hospital, a dar instruções sobre a contabilidade familiar. Depois reuniu sua turma e, numa dose antecipada de saudade, sofreu um AVC. Baleia levou nocaute no dia 19 de setembro, uma quarta-feira em cinzas.
As exéquias se deram à moda vileira, como o próprio Baleia havia pedido. “Quero ser velado na vila. O pessoal não vai ter dinheiro para o ônibus até o cemitério”, avisou, de véspera. Em vez de uma capela mortuária, as últimas honras foram dadas no “Barbaleia”, mercearia de propriedade de Sanches, localizada quase na esquina em que a via principal da vila, a Rua Manuel Martins de Abreu, bica com a conturbada Rua Guabirotuba. O local tem menos de 70 metros quadrados. Formaram-se filas à porta. “Acho que 2 mil pessoas…”, arrisca a viúva, a dona de casa Neusa Maria da Silva, 52 anos, 35 de casada, a “dona Baleia”, como gostam de zoar. “Muito mais do que isso – 5 mil pessoas”, corrige o filho mais velho, Marcelo – são seis ao todo, de dois casamentos. “Veio a vila em peso. Ninguém faltou”, calculam os comentaristas do episódio mais falado que as eleições.
Os relatos sobre o que aconteceu na mais longa vigília da comunidade se multiplicam – e devem cruzar gerações, com as fitinhas coloridas da imaginação. Foi a mais triste e também a mais bonita noite de que se tem notícia por ali. Videomakers de ocasião gravaram depoimentos, em meio ao entra e sai de gente no “Barbaleia”. As falas dos amigos se prestam a concluir o óbvio: a vila não tem rei ou rainha, mas tinha José Francisco – o criador da biblioteca, da praça, do museu e gourmet do melhor espetinho da redondeza. Fosse a vila um parlamentarismo, Baleia seria o líder moral, o depositário dos valores, o diplomata. Os fogos que soltaram em sua memória tratavam disso. Marcão, Cordeiro, Esny, Irenilda, Maurina, Ezequiel… São muitos seus órfãos.
“Eu te amo, Baleia”, disse uma criança, na ponta dos pés, diante do caixão. Na ida ou na volta da escola, era comum a petizada se pendurar no balcão do “Barbaleia” e, sem fazer cerimônia, pedir um doce, como se todo dia fosse Cosme e Damião. Não eram os únicos a desfrutar de seu beneplácito. Moradores em situação de rua – sim, eles existem na “Torres” – tiraram da cabeça o boné-de-posto-de-gasolina, em contrição. Tinham de agradecer. Um deles se pôs de cara lavada, tamanha comoção. Todo Natal – ou quando lhe dava na telha –, José Francisco montava uma mesa na calçada e servia um churrasco para os mais pobres dentre os pobres. O “Natal do Baleia”, como ficou conhecido, figurava entre as tradições da vila, assim como a Festa da Paz ou os campeonatos de peladas no campinho.
Como último ato para dar adeus ao homem bom, arranjou-se dois ônibus fretados, para levar ao sepultamento. Encheram num estalar de dedos. Calcula-se que mais de 20 carros seguiram o cortejo. “A Vila das Torres nunca viu nada igual. Baleia foi a nossa maior liderança”, desmancha-se o também comerciante José Cordeiro, propagandista militante do amigo. O Cordeiro é sempre o primeiro a ser procurado quando alguém quer conhecer o lado virtuoso da Torres – aquele lado que não cabe nas páginas policiais. E sempre recomendava: “Vocês precisam visitar o Baleia”. Passava o endereço. Na sua lógica, se um sujeito como o Baleia gostava da vila, a vila só podia ser boa. Um especialista chamaria de “estratégia do afeto”.
Baleia era, com folga, a mais discreta dentre as aproximadas 20 lideranças da Vila das Torres. Segundo consta, disse “não” a todos os convites que lhe fizeram, para se candidatar a associações e congêneres. A resposta vinha sempre na mesma toada – desculpava-se, dizendo ter estudado pouco, não mais do que a 3.ª série, o que lhe parecia um impedimento. Por sorte. Longe da rede de intrigas paroquianas – que existem também nas pequenas aldeias –, sobrou-lhe tempo para exercitar a maior de suas qualidades: o carisma. Os demais podiam estar prestes a trocar catiripapos, mas nunca ele, sempre um nobre. Inclusive vestido como tal.
O asseio de Baleia merece um aparte. Apresentava-se bem barbeado, cabelo com rodapé feito e vestuário com vinco impecável. Parecia não suar, mesmo que o calor estivesse inclemente às margens do Rio Belém. A roupa era escolhida pela mulher, que lhe respeitava o gosto por camisas de manga comprida. “Achava que envelheciam”, conta. A polidez na indumentária se estendia à conversa, eivada de civilidade máxima. Raro falar de si – apenas debaixo de insistências. Preferia ouvir o interlocutor, aos quais reservava elogios, ainda que nem sempre justos. Falo por mim – quem me dera  merecer as deferências do Baleia, cujo teor guardarei no silêncio. Bondade dele, garanto.
Seu encontro com a vila foi um verdadeiro romance de cavalaria. Chegou ali gurizote, por volta de 1968, quando a região ainda se chamava “Vila do Pinto”, um apêndice da hoje extinta Favela do Capanema. Vinha de Paranacity, Norte Novo, 11 mil habitantes. Encantou-se com o endereço. Para surpresa dos que o escutavam, garantia ter pescado e nadado nas águas do Belém, o que hoje resultaria em intoxicação seguida de morte súbita. O gosto pelo rio e os quilinhos a mais teriam originado o apelido à Graciliano Ramos, nunca contestado.
Teve oportunidade de morar no outro lugar – bem longe, inclusive. Adulto, viveu no Japão três anos, para fazer dinheiro. Tinha ascendência nipônica pelo lado da mãe. Foi o único período longe da comunidade, para onde voltou. Neuza não reclamou da decisão. “Também gosto daqui”, repete, ao fazer um balanço do legado deixado pelo companheiro. À frente do sobrado está a praça que Baleia construiu, para reunir a turma numa Copa do Mundo. A obra, erguida com pneus velhos e restos de tinta, permaneceu, como ponto de encontro da ocupação que surgiu na década de 1950 e só agora, 60 anos depois, está em vias de concluir sua regularização fundiária.
Outro feito, a biblioteca da vila, formada por 6 mil livros retirados do lixo, trazidos pelos carrinheiros. Baleia dividiu o projeto com outros atores, mas extraoficialmente sempre será o fundador. Até há duas semanas, quando partiu, sua mercearia funcionava como posto de doação de livros, que encaminhava para o Clube de Mães, hoje responsável pela biblioteca. Na frente do estabelecimento há uma estante com os dizeres: “Ler é saber, leia mais”.
O museu veio por extensão. Sabedores do gosto do Baleia por fotografias e toda e qualquer invocação do passado, os vizinhos costumavam lhe repassar retratos de finados, registros de jogos de futebol, paisagens de tempos idos. O material virou um museu, que funcionou até há poucos anos numa das lojinhas do comerciante. O sujeito que ressentia de não ter estudado, por ironia, deu à Vila das Torres um espaço de leitura, um lugar para resguardar a memória, um cantinho de encontro. De todas, a melhor lembrança será a de que amava os mais pobres. Eis a virtude dos grandes.