José Carlos Fernandes

Sociedades negras, seis histórias

José Carlos Fernandes
17/03/2019 20:00
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Foto: André Rodrigues/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

A publicitária Brenda dos Santos corrige o repórter à queima-roupa: “Alto lá. Eu não pesquiso a ‘13’… Eu vivo a ‘13’”. Ela se refere à razão de seu afeto – a Sociedade Operária Beneficente 13 de Maio, tida como a terceira agremiação fundada por negros no país. Ao que tudo indica, o nascimento se deu dez dias antes da assinatura da Lei Áurea, em 1888, numa Curitiba de 25 mil habitantes, sendo em seguida rebatizada. Um estandarte puído pelo tempo não deixa mentir.
A data é danada de boa. Imaginar que no ano da Abolição da Escravatura havia negros forros na cidade, em condições de fundar uma agremiação, desmente o senso comum sobre os negros no Paraná e põe uma faca no peito do “Paraná europeu”. Não só a quantidade de homens de cor, como se dizia, ultrapassava, e muito, o número de dedos nas mãos, como não estavam passivos, à espera de uma canetada da princesa Isabel. Havia entre os sócios homens livres e estabelecidos. A “13” é uma prova de que o Brasil das senzalas era não só tenso como diverso, longe da ideia ingênua de que havia um único cenário escravocrata de cima a baixo no país.
Brenda faz bem em “viver a 13”, como gosta de dizer. Ela se descobriu mulher negra ao pisar na sociedade beneficente, em meio a rodadas de maracatu. Hoje faz parte da diretoria. E não resiste à tentação de ir um pouco mais longe. Volta e meia estica os olhos nas atas amareladas por mais de um século, gasta tempo debruçada nos álbuns de fotos, contempla a bárbara estrela em madeira no teto na “13”. Sua incontinência confessa? Escutar o que dizem os sócios mais antigos, no burburinho das reuniões festivas. Sabe muito do riscado – a seu modo.
Não deu outra: tornou-se parceira de um fenômeno dos últimos tempos. Uma leva de pesquisadores deu de tirar a poeira dos arquivos da Sociedade Operária Beneficente 13 de Maio, assim como de temas adjacentes – como as primeiras professoras negras. A lista de estudiosos passa por Joseli Nunes Mendonça (do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná), Jhonathan Souza, Jorge Santana, Noemi Santos da Silva, Thiago Oshino e Fabiano Stoiev. E por historiadores diletantes, como o potiguar naturalizado curitibano Edvan Ramos da Silva, uma referência em Maria Bueno. Trata-se de uma verdadeira expedição de caça ao tesouro. Essa turma revela que na Rua Clotário Portugal, 274, bem na altura onde nasce a Alameda Princesa Isabel, ainda em chão de paralelepípedos, se desenvolveu uma Curitiba negra, cujo enredo daria um novo campeonato à Mangueira. Não tomem por exagero – estamos em meio a um Renascimento.
Com um desses aficionados, Brenda saiu do braço dado. Trata-se da antropóloga Geslline Braga, coautora do livro Santa da casa, sobre a lavadeira negra Maria Bueno, entre uma dezena de outros estudos. Causam. Em novembro passado, a dupla assinou a exposição “Clubes sociais negros”, em cartaz no Museu Paranaense (Rua Kellers, 289, nas Ruínas) até o fim deste mês. A mostra é pequena, porém não deixa nenhum visitante entediado ou com vontade de assobiar. No espaço de uma vitrine de cinco metros de comprimento, num dos corredores do Palacete Garmatter, sede do Museu, instalaram plotagens, retratos, indumentárias e objetos que resumem para o visitante a ópera de seis sociedade negras paranaenses.
As sociedades são um cenário lúdico e surpreendente, um platô de onde se pode enxergar a escravidão para além da conta e das histórias para boi dormir. “Não existiam leis segregacionistas, mas a segregação era visível. Os clubes funcionam como um atestado de como se dava a presença negra numa sociedade de branqueamento. São monumentos que demonstram que essas pessoas existiram e construíram seus espaços. Que batalharam pela cidadania”, comenta Geslline.
Tanto quanto a “13” de Curitiba, a pioneira, essas agremiações supriram a ausência do Estado no amparo à população alforriada – disparate que se estendeu por décadas de orfandade pós-1888. Desenvolveram-se em cidades como Ponta Grossa (Clube Literário e Recreativo 13 de Maio, 1889), Guarapuava (Clube Rio Branco, 1913), Castro (Sociedade Recreativa dos Campos Gerais, 1921), Tibagi (Estrela da Manhã, 1934) e Londrina (Arol, 1951). Faziam papel de previdência, auxílio em funeral, amparo na saúde e, sobretudo, ofereciam lazer em sociabilidade em altíssima voltagem. Fizeram grandezas com sua hospitalidade. Estavam na lista de preferências de gente bamba. Aperitivo? Do governador Ney Braga ao prefeito Maurício Fruet, não poucos preferiam a “13” aos salões do Concórdia e do Curitibano. As imagens de eventos nesses clubes, garimpadas por Brenda e Geslline, não deixam dúvidas. Estão na vitrine, ao lado de vestidos de festa das mulheres negras, reeditados pela equipe da historiadora Tatiana Takatuzi, do Museu Paranaense. Um barato.
Não só. Há depoimentos em vídeo. São de se beliscar. Foram recolhidos por Geslline para uma pesquisa anterior, feita por encomenda para a Unesco. Em Tibagi, nos Campos Gerais, décadas depois da Abolição, a orquestra da sociedade negra Estrela da Manhã só podia entrar nos clubes brancos em dia de carnaval. A recíproca não era verdadeira. É fato que há registros, em décadas distantes, de mal-estar com a presença de mulheres brancas mais desinibidas em bailes das sociedades negras, mas sem proibição de trânsito. Temiam ser confundidas. Se as brancas não podiam vacilar, como diz a canção, façam a ideia das negras.
Detalhe. À revelia das ervas daninhas espalhadas pelo racismo, uma espécie de “crime perfeito” em terras brasileiras, as agremiações sempre fizeram bons bailes para o Rei Momo, elegeram suas misses, desfilaram suas debutantes e promoveram festanças com os melhores crooners da praça. Deram o troco, sobrevivendo. Mesmo quando, nos anos 1990, todos os clubes do gênero – de italianos, poloneses, ucranianos e alemães – deram de baixar as portas, espaços como a “13” continuaram na berlinda. “Aqui teve escolha de a mais bela transexual, encontros de operário, de punk, partido de esquerda e baile da terceira idade”, diverte-se Brenda, sobre a sociedade negra ter se tornado uma espécie de pátria dos deserdados, no melhor estilo “ninguém solta a mão de ninguém”.
Não se trata de um fenômeno isolado. Mapeamento nacional sobre as sociedades negras promovido pelo Iphan – da qual Geslline participou – mostra que, em todo o país, essas agremiações funcionaram como espaços de resistência. Nos documentos de fundação se fala na preservação da cultura negra. São manifestos. “Estudá-las nos coloca ao pé de uma rede que cruza com a maçonaria, os tropeiros, os irmãos Rebouças…”, ilustra a antropóloga. Saber delas dá coceira nos curiosos. Impressiona, por exemplo, descobrir que algumas não têm mais sede, tamanhos foram os desmandos, mas permaneceram vivinhas-da-silva na casa dos negros, por força da oralidade e da teimosia. É o caso da Arol – Associação de Recreação Operária de Londrina, a mais nova de todas. Antes dela houve outras no Norte Novo, como o Clube Quadrado, de 1940, cujo nome é uma oposição a um dos famosos clubes brancos da época, o “Redondo”.
Os sócios e ex-sócios dos seis clubes se sentem em dívida com o lugar que os tirou do isolamento. Nos salões fizeram amigos e se divertiram, apesar de tudo. Os depoimentos que dão são movidos a açúcar e afeto. “As atas não traduzem esses sentimentos. Os clubes existem de maneira especial na fala de quem os frequentou”, arremata Brenda.
Em tempo, há estados da União que são modelares nessa levada vintage. O Rio Grande do Sul é pródigo no número de sociedades do gênero – algo perto de 60 clubes. Preservá-las tem dado mais barulho que baile no CTG. O pedido é que os órgãos de patrimônio as transformem em patrimônio imaterial. As pesquisas não param. Não é demais dizer que nesse momento um arquivo está sendo aberto, em algum ponto do país. Ou se pressiona para que isso aconteça, nem sempre com sucesso, a exemplo da busca por documentos junto à Igreja sobre as irmandades, como a de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário.
Enquanto toda essa documentação não vem à baila, os arquivos das sociedades permanecem surpreendendo. São fonte, no sentido explícito da palavra. É um deleite, por exemplo, saber que as agremiações eram administradas por negros sapateiros, pedreiros – duas profissões bastante comuns –, mas também por rábulas – advogados provisionados – e, posteriormente, por funcionários públicos. Havia bibliotecas e espaços para as crianças brincarem – diz muito, diz tudo. A “13” mantinha uma escola de sapateiros “e ter um sapato era simbólico para a uma população recém-saída da escravidão”, frisa Geslline Braga.
Mais. Havia no interior desses grupos uma forte presença feminina, não raro dando origem às próprias sociedades. O Clube Rio Branco de Guarapuava nasceu do Grêmio das Violetas – formado por lavadeiras que juntaram cada tostão para erguer a sociedade. Geslline e Brenda estão muito a fim de pôr esse capítulo na roda. Aguardem.