José Carlos Fernandes

Um barracão no centro do mundo

José Carlos Fernandes
02/09/2018 21:00
Thumbnail

Foto: Ari Baiense / Arte: Felipe Lima

A vida do carioca Aristóteles Baiense, o Ari, 49 anos, faz a gente se sentir pequenininho. Durante boa parte de suas lides profissionais, trabalhou em bases de exploração de petróleo, aqui e ali… ali bem longe. Mesmo quando fixou endereço em Curitiba, na década de 1990, passava a maior parte do tempo nas plataformas, quando não em países como Tanzânia, Nigéria e Angola, seus segundos endereços por dez anos. Para visitar a mulher Rose – e os três filhos – cruzava o Continente Negro e o Oceano Atlântico, fazendo de conta que ia à padaria. Mal chegava, para um cheirinho nos seus, tinha de dar meia volta-volver. Não reclama. Faz o tipo amoroso. No mais, a soma de suas milhagens é uma conversa boa para os ouvidos, um bom livro de Karl May, uma almofada para repousar a cabeça.
Paralelo às pontes aéreas transcontinentais, o profissional do ramo de combustíveis e afins manejava uma máquina fotográfica. Foram amantes numa paixão. Ari pertence à tribo dos que têm no voluntariado uma marca natural do caráter. Faltam dedos para registrar com quantas ONGs e similares se enlaçou, em historietas que narra sem afetação, das vividas em Itaperuçu ou noutros pontos do mapa. Clicou a maioria delas, com ganas de registrar que, misérias à parte, tem gente boa pacas nesse “mundão”, aumentativo que lhe é familiar.
Pois desse enlace aconteceu o que tinha de acontecer. O voluntariado venceu a África, o Atlântico e as superlativas bases petrolíferas. Em meio à disposição hercúlea de “se inscrever para ajudar”, levou a tiracolo a máquina de fotografar, sonda portátil com a qual penetra nas profundezas da humanidade. Como gosta de ser apresentado? “Como fotógrafo”, avisa. Quem conhece essa tribo sabe como se porta: aos poucos sai das cenas, torna-se invisível, rendida à dinâmica das lentes, a prótese que escolheu para enxergar.
Ari Baiense, contudo, tem lá os seus caprichos. O homem para quem o Cabo das Tormentas é uma esquina qualquer tem predileção por um endereço: a Associação de Catadores de Materiais Recicláveis Mutirão, no imenso Sítio Cercado, bairro-cidade de 115 mil habitantes, divisa onde Curitiba tem sotaque nortista, abrigo dos órfãos da Geada Negra de 1975.
Somados todos os voos noturnos, os jet lags, os overbookings, as solidões de quem ouve que “máscaras de oxigênio cairão sobre sua cabeça”, são 11 anos de visitas “sempre que deu” ao barracão em que 24 confederados separam boas toneladas de lixo por mês. Ari é uma figura familiar nos 800 metros quadrados em que papéis, plásticos e metais são redesignados pelas mãos ligeiras dos associados. O homem muito alto e de gestos econômicos é recebido com abraços e beijinhos, aos quais retribui com o sotaque aristocrático cheio de “esses”. Às gentilezas, compensa com cliques cuidadosos. Nada de se comportar como o faminto que invade a copa. A máquina é digital – mas por trás dela está um sujeito analógico. A propósito, ao todo, a Associação Mutirão é tema de 3 mil fotos do acervo fotográfico de Baiense.
Mais de uma vez, Ari ouviu que suas expedições ao Sítio Cercado “dariam um livro”. Até que domou a timidez e se rendeu às evidências. Meses atrás, contabilizou que tinha uma súmula da associação em imagens. Tudo muito peculiar. Fez as fotos sem pretensão de documentarista – impera na série a obscena poesia do cotidiano. Chamou outros quatro voluntários tão incorrigíveis como ele e deu início à edição de um fotolivro sobre o espaço que é, com folga, o pioneiro a reciclar em regime de cooperativa. Quem conhece o mínimo sobre o métier sabe a lenha que é congregar coletores, os populares carrinheiros, para dividir a peleja e a renda. As regras da informalidade tendem a ser para eles uma segunda natureza, daí a resistência. Nesse cenário, os feitos da “Mutirão” são um pequeno milagre que aos poucos sai dos limites da paróquia. Literalmente.
A trajetória da Associação Mutirão começou debaixo das eiras, das beiras e das cruzes da Paróquia Profeta Elias, Sítio Cercado, nos idos de 2003. Os frades carmelitas – que ali atuam – e a religiosa irmã Palmira se deram conta de haver levas de carrinheiros na sua fileira de fiéis. Entre uma leitura do Êxodo e outra, no melhor do estilo Comunidade Eclesial de Base (CEBs), a turma deu de estacionar o carrinho e gastar tempo com um exercício simples: entender o que a Escritura tinha a dizer para quem amassava latinhas de cerveja com os pés. Conquistaram dos benfeitores balanças, carrinhos e um teto. Depois foi seguir para o batente, com a crença de que não podiam deixar a Terra Prometida para depois. O barracão perto da igreja virou a Canaã carrinheira, dando início a uma experiência comunitária que colabora com a preservação ambiental e, de quebra, abastece as despensas de pelo menos 70 pessoas. “A gente vive do lixo”, diz a turma da associação. É um mantra.
A porta-voz da associação se chama Sandra Mara Lemos, 43 anos, paranaense de União da Vitória. Não é mais a líder do grupo, cargo hoje ocupado por Clécio de Oliveira, 37 anos. Mas permanece na proa, cercada de farnéis por todos os lados. À pergunta se é uma espécie de rainha Elizabeth do pedaço, a resposta vem debaixo de risos e acenos com a cabeça. Siiiiiim. A Mutirão se tornou pujante, uma régua para tantas outras que se formam pela Região Metropolitana de Curitiba. Sandra é capaz de discorrer durante horas sobre assuntos como o mercado de recicláveis, hábitos dos curitibanos na gestão do lixo doméstico, tipos de plástico, além de ditar, sem gaguejar, qual o receituário para um grupo de catadores dar certo – imune a bate-boca na hora da pesagem do material.
“Ela manja tudo de contabilidade”, cochicha o alagoano Petrúcio Marques, 73 anos, associado ao barracão. “Temos um estatuto”, diz ela, que exalta o lastro do trabalho desenvolvido. “Vem uns gringos aqui, a gente nem entende o que estão falando…” Sandra palestrou em universidades e congressos, posou para retratos com ambientalistas laureados. “Pois é, e mesmo assim, muitos de nós têm de lidar com o preconceito dos parentes, assim que a gente conta como ganha a vida”, alfineta – e acrescenta: “A gente sabe brigar”. Ao seu lado, enquanto isso, a mana Salete abre os sacos com papéis e plásticos que deixamos nos latões. Usa luvas. Lamenta uma fralda suja no meio do que ainda presta (“às vezes, vem até animal morto”). Depois se diverte com um bibelô de porcelana entregue à sorte. Cuida de um caco de vidro. “Já encontrei aliança de casado num saco plástico…”. Imaginar como é que foi parar ali diverte durante o batente.
Ao circular pela imensidão de fardos de plástico e máquinas de prensar da Associação Mutirão, difícil não lembrar dos documentários Lixo extraordinário, de Karen Harley e João Jardim; e de Estamira, de Marcos Prado, ambos filmados no lixão Jardim Gramacho, no Rio de Janeiro. O primeiro filme registra a comovente imersão do festejado artista plástico Vik Muniz junto a um grupo de trabalhadores do lixão. Com pneus carecas, panelas enferrujadas e o que mais sobrou, Vik montou instalações algo renascentistas, a partir de retratos que fez dos catadores. Só vendo. Depois do delírio estético de se flagrar vertido em arte, com a ajuda da feiúra das sobras, os personagens que aparecem no doc deixaram de ser operários envergonhados, recobrando a coragem de falar. Que me perdoem o Harold Bloom e outros que acham ingênua a crença de que a arte pode salvar, mas o povo da Gramacho deu uma cambalhota no destino depois do Vik. No Sítio, idem.
Quanto a Estamira, trata-se da catadora algo profética – ensandecida de poesia e clamor, qual um Arthur Bispo do Rosário solto entre os urubus. O Fim dos Tempos deve ser bem parecido com o cenário em que circula essa mulher em farrapos. Mas, do mesmo modo que assusta, a treva ali é recomeço. Há uma beleza convulsiva naqueles caminhões e caminhões de detritos. São a montanha do século 21, de onde se pode ver em contemplação o que fizemos de nós e da Terra.
Não causa espanto que um viajante experiente como Ari tenha se encantado com o barracão curitibano. Nada mais ficcional e nada mais realista que garrafas pet separadas e prensadas, verdadeiras peças do novo realismo, dignas dos melhores museus. Lugares assim roubam a alma dos fotógrafos. E mexem com os brios dos humanistas – que, em busca de uma resposta, a encontram na fala de gente como Sandra, Petrúcio e Salete.