José Carlos Fernandes

Um enredo para Wilson Bueno

José Carlos Fernandes
16/09/2018 20:00
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Foto: Marcelo Andrade/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

O jornalista Luiz Manfredini tinha um projeto bem bacana. Imaginava reunir para uma conversa seus amigos de infância – uma turminha que circulava pelas imediações da Praça da Espanha, nos anos 1950-1960. Renderia um livro, quem sabe. “Eu guardava a memória deles e eles a minha”, resume, sobre a dinâmica. Quem fez a experiência desse troca-troca sabe: é verdade. Em grupo, os espaços vazios tendem a ser preenchidos. E na fala do outro, encontramos a página perdida das nossas lembranças – quando não uma nova versão dos fatos.
O projeto ganhava tanto mais força ao se levar em conta quem fazia parte da pequena trupe de guris – criados à solta numa Curitiba da era paralelepípeda. A começar pelo próprio Manfredini, o Manfra, como é chamado. Ainda adolescente, alfabetizou-se nas ideias da esquerda e viu no jornalismo um instrumento para transitar nos escombros. Ao combater a ditadura civil-militar instaurada em 1964, o ex-repórter do mítico Jornal do Brasil sentiu a mão pesada do autoritarismo. Sua trajetória de resistência é um capítulo do inventário sobre os anos do chumbo. Como de praxe, dói.
O outro personagem da história é Wilson Pinto Bueno, paranaense de Jaguapitã, também feito jornalista. Veio a se tornar uma das revelações da literatura brasileira a partir da década de 1980. Seu engenhoso Mar Paraguayo – escrito em portunhol – frequenta qualquer lista que se preze sobre invenção e linguagem.
É curioso imaginar Manfredini e Bueno juntos – mais trocando livros do que na disputa de peladas nos campinhos, segundo consta. Conheceram-se em 1958, piás, vizinhos de frente. Tinham apenas um ano de diferença. Luizinho e “Vilso” não eram feitos do mesmo barro. Nem tomaram o mesmo trem das onze, ainda que sonhassem ir um dia a Paris. Ambos são crias do espírito de 68. Um virou representante castiço da juventude que se aparelhou para derrubar o regime. O outro bateu o pó dos chinelos e partiu da “Macholândia” – apelido para Curitiba, a cidade que credenciava apenas dois homossexuais, o Oswaldinho e a Baronesa. Entregou-se com apetite ao “desbunde” carioca e acreditou que a revolução passava pela cama, pelo deboche – com batom na boca se preciso. Nenhum dos dois pagou com trocados suas escolhas.
Aconteceu que no fim de maio de 2010, Wilson Bueno – com quem Manfredini passou a manter uma relação quase protocolar – foi assassinado a facadas em casa, no já não tão pacato bairro Tingui. De destaque nos cadernos de cultura, o escritor virou manchete de páginas policiais, nas quais sua intimidade acabou devassada. O agressor era um garoto de programa. O motivo da contenda pode ter sido uma discussão torpe sobre o valor de um cheque pelos serviços prestados. Fascinado pela marginália – um dos combustíveis para sua criação –, Bueno levou um bote dos que tanto amou, os “facínoras fascinantes”, como brincava. Chamam a isso de tragédia grega.
A morte do escritor levou junto o plano de “reunir a turma”. No velório, Manfredini se deu conta de que, dos quatro mais chegados do quarteirão, apenas ele viveu para contar. Todos se foram antes da hora. Entendeu que lhe cabia, se não biografar, pelo menos escrever sobre Bueno. Seu ponto de vista podia não ser o melhor, mas não menos privilegiado. “Partilhamos um período essencial da vida”, resume Luiz. A empreitada começou em 2014 e ganhou o título A pulsão pela escrita (Editora Ipê Amarelo), com lançamento na próxima terça-feira. O gênero? Todos, o que não poderia deixar de ser em se tratando de uma obra que coloca tão perto jornalismo, recordações e uma realidade tão bruta que beira a ficção.
“Ao vê-lo no caixão, não pude deixar de pensar do quanto fomos privados. Aquele mente brilhante estava ali, apodrecendo”, lembra. Não há exagero. É fato que Bueno colecionou inimigos, em especial quando embalado pelos coquetéis etílicos que, por décadas, o conduziram à porralouquice. Quando embriagado, o homem elegante – “um vitoriano” – dava lugar a um alter ego impiedoso, um Jean Genet tomado pelos demônios. Nessas horas, se preciso, ostentava a frieza de um anestesista. O seu contrário – claro – soava muito melhor às orelhas. Ouvi-lo discorrer sobre literatura proporcionava um prazer oceânico. Muito me espantava que nunca tenha sido chamado para paraninfo de uma turma de Jornalismo. Seria merecido – não só por sua eloquência, mas pela carreira que construiu, debaixo de furacões.
Bueno fez nome na cultura carioca, com passagens por veículos como a Tribuna da Imprensa e O Globo. Aprontava – ganhando com frequência a porta da rua. Mas voltava às lides, conduzido pelos que o admiravam. Morou uma década no Rio de Janeiro e tinha entre suas credenciais passagens pelo Solar da Fossa, que abrigou toda a turma da contracultura – os Mutantes, por exemplo – e adjacentes, como a atriz Darlene Glória e o policial justiceiro esquadrão Mariel Mariscot. De acordo com Toninho Vaz, autor do livro-reportagem que leva o nome do pensionato, Bueno foi um dos últimos inquilinos a deixar o local, assim que foi selada a demolição do prédio, para dar lugar a um shopping. Diz muito sobre ele.
Foi um libertino de carteirinha. Sua vida louca – cuspida e escarrada na caretice pornográfica dos anos de chumbo – compunha um mosaico com os feitos que alcançou. Assim que voltou para casa, embalado pela Anistia, deu adeus aos tragos. Pelo menos em parte, os labirintos da Galeria Alaska ficaram para trás. Ganhou canja de galinha, colo da mãe e se entregou à pena, para alívio dos amigos, cansados de socorrê-lo. Era um equilibrista da bipolaridade. E era genial.
Nos cálculos de Manfredini, dos quase 20 livros escritos por Bueno ou dos quais participou, pouquíssimos, a exemplo de Bolero’s Bar, de 1986, foram escritos nos tempos de boemia incondicional e irrestrita. “Num de nossos encontros ocasionais, disse ter abandonado até o cigarro. E que a abstinência teve sobre ele um efeito de limpidez mental.” A hipótese é de que ele se tornou um administrador severo da própria compulsão, a que só resta agradecer. Não só por ter ajudado a produzir peças literárias como Meu tio Roseno, a cavalo ou Cachorros do céu, mas porque escreveu seu nome nos anais da imprensa cultural, à frente do jornal Nicolau (1987-1998) – editado pela Secretaria de Estado da Cultura. “Se ele não tivesse feito o Nicolau, penso que não haveria essa conversa”, pontua o jornalista, para que não escape a importância do suplemento que compõe, ao lado da revista Joaquim, de Dalton Trevisan, uma de nossas glórias editoriais.
A propósito, A pulsão pela escrita é um livro econômico, no qual as licenças poéticas são tratadas com pinça. A emoção contida desvia da casca de banana da manipulação. Ponto a favor. Mas não consegue impedir que o leitor sinta o mesmo que Manfredini no dia das exéquias de Bueno – a pena por perdê-lo. Numa dessas deliciosas ironias, é o militante marxista que nos faz enxergar, com fascínio, a entrega incondicional do biografado à luxúria, ao barroco e às próprias contradições. Suas incursões ao bairro carioca da Lapa, travestido e com nome de guerra – para citar uma das passagens –, não só nos pegam desavisados como levam a crer que Bueno se tratava de um desses transgressores que mudam a órbita do globo, a partir do subterrâneo.
“Em política, foi um cara confuso”, define Manfredini. Em literatura, podia correr atrás do próprio rabo. Resistiu em publicar o primeiro livro – o que fez sob pressão dos companheiros de ofício Roberto Gomes, Jamil Snege e Paulo Leminski. Paralelo, o inseguro Bueno ambicionava ser maior que Machado de Assis e Guimarães Rosa, cujos trechos copiava em caderninhos que carregava consigo. Podia ser uma sombra de Rimbaud – e também um bom sertanejo, daqueles que fazem a gente se sentir em família. Arrogante por vezes, fazia-se missivista incontinente e modesto. Escreveu perto de 200 cartas ao padrinho literário João Antônio (Malagueta, Perus e Bacanaço), com o qual comungava o gosto pelo submundo. Merecem uma coletânea. Agora se sabe também que o exuberante Bueno e o visionário Manfredini dividiram sonhos em conversas no portão. Não foram juntos a Paris, mas só podemos concluir que foram longe. Valeu.
Luiz Manfredini lança A pulsão pela escrita (Ed. Ipê Amarelo) terça-feira, a partir das 18 horas, na Casa de Chá The Kettle (Rua Prudente de Morais, 836). A biografia é um patrocínio da Itaipu Binacional, com produção da Cultural Office.