José Carlos Fernandes

Um filósofo para chamar de seu

José Carlos Fernandes
20/01/2019 20:00
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Arte: Felipe Lima

Quando a gente conta que se formou em Filosofia, a reação é quase sempre a mesma – expressa na voz e, não raro, num silêncio constrangedor: um curso fácil de entrar e ruim de arrumar emprego. Colocaria no meio mais uma frase – “difícil de terminar”. As cadeiras são muitas e pesadas feito um hipopótamo. Uma vez concluídas, não nos dão muita certeza de que o conteúdo está dominado. Tudo é adversativo. Não por menos, trata-se de uma das raras carreiras em que os diplomados não se apresentam como tal. Por escrúpulo, em vez de se autodeclararem “filósofos”, dizem-se “graduados em Filosofia”. E, quando se dizem “filósofos”, o fazem debaixo de uma película de timidez, afinal o título pertence a gente grande, que faz cabeças há séculos, a exemplo de Platão, Descartes, Montaigne e Kant. Soa pedante se colocar nessa galeria depois de patinar, derrapar e se espatifar nas aulas de Metafísica, Epistemologia e Cosmologia.
As particularidades não acabam aí. Diz-se que o que se aprende numa faculdade qualquer “serve” para não mais do que dois anos de vida profissional. Esse cálculo positivista merece o bocejo eterno, o desprezo profundo, seguido de três silvos longos e um breve. Mas, supondo que seja verdade, não vale para a Filosofia, cujo quadro é ainda pior. É senso comum entre os que aventuraram nesse cipoal que, quando se termina o curso, aí é que se está pronto para começá-lo. Só no fim é que se tem o vocabulário, os marcos históricos, a literatura essencial, o equipamento teórico para, em síntese, filosofar. Equivale a dizer que, no fundo, ninguém se forma em Filosofia, porque é um eterno devir. Quando encerra é que começa, uma roda-gigante desgovernada.
De minha parte, costumo brincar que o meu curso de Filosofia está vencido. É uma forma de informar que parece moleza, mas dá um trabalho dos diabos. Diploma na parede não prova nada. Tem prazo de validade. Precisa renovar o estoque. Uma tortura. Vale também como uma indireta contra o desdém coletivo em relação a essa carreira mantida a custo de suor e lágrimas. Estudar Filosofia, para quem não sabe, adoece. As teorias envenenam o sangue. O estudante somatiza premissas e teses. Penso que haja similares apenas na Psicologia ou nas Letras. A Filosofia nos põe doentes, porque a gente abre os tratados para estudar e coloca a própria vida no fio da navalha, a faca no peito. Sujeito e objeto se embaralham. Ninguém sai impune dessa empreitada. Pensar dói.
Tive um colega de faculdade que pirou por causa do Heidegger. Ficava horas olhando o vazio. Lembro dele com cara de êxtase de Santa Teresa lendo Ser e tempo, tarefa que por questão de sobrevivência pulei. Até porque tive de estudar muito para não reprovar em Lógica. O professor – um padre sádico com pinta de playboy – desenhava um sorriso e uma lágrima no quadro negro, e dentro da imagem colocava nossos nomes, a depender das notas da prova. O meu simplório “José” estava sempre na lágrima, em companhia dos demais ineptos para o ofício. Mas não escapei da sina – perto de me formar ganhei uma pústula no cóccix, antes de essa parte limítrofe do corpo ser o nome de um disco bonito da Elza Soares (Do cóccix até o pescoço). Tenho a convicção de que a culpa foi do Nietzsche, ao qual passei a ler com apetite desmesurado, lançando-me num estado de purulência física e emocional. Caí de cama. Pus, depressão e Zaratustra.
Não é exagero. O estudante mais inteligente da minha época – um dínamo que tinha transado mais pensadores do que toda a galera junta – ficou doido varrido. Recuperou-se tempos depois, já formado e livre das leituras incômodas, o que me causou uma certa tristeza, confesso: era um sujeito interessantíssimo quando fora do juízo. Dizia coisas engenhosas, sem precisar recorrer ao macete dos palavrões e às afetações, como se estilo fizesse de alguém um Barthes.
Não sei se ainda hoje existe tamanha selvageria no mundo dos aprendizes de Filosofia, ou se o curso virou um exercício de resolução de problemas passíveis de serem aplicados no mundo corporativo. De qualquer modo, caro leitor, peço que evite maldizer os gatos pingados que enfrentam essa faculdade “moleza de entrar”, mas que exige coragem para domar textos que são feito leões. E que, depois da arena, enfrentam o que sobrou de si mesmos, no caos da solidão ontológica.
Admito que talvez seja uma conversa mole. A filosofia anda em alta, o melhor é dobrar a língua, porque no totalitarismo digital todo mundo virou especialista em segurança pública, teórico da educação, economista e… filósofo. Fosse feita uma pesquisa, qualquer brasileiro atento saberia citar o nome de um filósofo, e não se trata de Sócrates ou Aristóteles. O novo governo tem um guru, que anda nas bocas, sendo citado sem ser lido. Conseguiu-se algo que não se via desde os tempos em que Fernando Henrique Cardoso debutou na vida pública, há mais de 30 anos. Ainda que FHC não fosse propriamente um filósofo, mas um sociólogo, a confusão concorreu para a popularidade da mais maltratada das áreas do conhecimento. Noves fora…
Lembro de um frase à época, vinda da endiabrada atriz e produtora cultural portuguesa Ruth Escobar, uma mulher que marcou o teatro brasileiro. Ao se referir a Lula e a FHC, disse que “entre o encanador e o filósofo, ficava com o filósofo”. Quis dizer entre “o torneiro mecânico e o sociólogo”, mas todo mundo entendeu o desaforo, especialidade da senhora Escobar. Não faltou quem lhe perguntasse, em caso de um cano estourado, a água arruinando a casa, a quem recorreria. Deve ter mandado todos à merda. Outros tempos. O pragmatismo político venceu, mas, como o Brasil não é de fato para amadores, agora o filósofo dá orientações para um dirigente que também vem com funções de encanador – e assim tropeça a humanidade, da qual, suponho, ainda fazemos parte. Um péssimo aluno de Lógica não pode ajudar muito neste caso.
De modo que resta uma saída lúdica nesses tempos de maquiavelismo pornográfico: agarrar-se num filósofo. Que cada um siga o exemplo dos dirigentes e arrume um “filósofo para chamar de seu”, como na deliciosa música do Erasmo Carlos. A orientação não é de todo saudável. A essa altura da engrenagem da história, melhor é sempre ouvir mais de um pensador, de modo a não sair batendo cabeça no muro. Mas vá lá, trata-se de uma urgência em tempos de cólera. Nessas horas, é legítimo procurar as consolações da filosofia, como forma de bem viver. De minha parte, se me permitem, mais de uma vez contei com os préstimos da ensaísta norte-americana Susan Sontag. É puro oxigênio. Lembro de um de seus ditos em particular. Está no póstumo Ao mesmo tempo, organizado por seu filho, David Rieff. Susan estimula a ser singular, a ter voz, o que só se consegue à custa de ações plurais, múltiplas e promíscuas. Mostra que o imperativo da vida é resistir à simplificação. E que precisamos “agir contra os saqueadores da mente”.
É bom lembrar que andar de braço dado com um filósofo nem sempre é um passeio no parque. Se for dos bons, ele nos incomoda com perguntas. Não dá sossego. Chateia. Susan, por exemplo, não nos deixa quietos. Fala da dor dos outros, o que exige exercícios constantes de alteridade, enchendo o saco do nosso egoísmo classe média. Critica a certeza das interpretações, mesmo que seja impossível nos safar delas. Expõe nosso ridículo. Convida a mergulhar no lago gelado, a mais bela das metáforas do pensamento. Dá uma canseira danada se armar de ideias. A filosofia tem dessas coisas.