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Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo
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Em boa medida, o governo Bolsonaro não é muito diferente daqueles que o antecederam. Existe a necessidade de se relacionar com o Congresso e ao mesmo tempo de atender aos anseios da sociedade. Há que lidar com temas críticos em searas fundamentais para o país, porém sem deixar de atentar para categorias unidas e bem organizadas, inclusive estabelecidas no próprio sistema político. E, claro, sempre existe o risco de que travessuras pouco republicanas da parte de integrantes do escrete ganhem notoriedade em algum momento.

Entretanto, ainda que essa característica que cito agora também não seja exclusiva do bolsonarismo — na verdade é a alma mater da maioria das administrações federais desde a nossa reabertura democrática —, chama a atenção a habilidade em pautar todas e quaisquer bandeiras por meio de espantalhos. Via argumentos que em condições normais não se sustentariam, mas que sobejam em ambientes polarizados como.

O projeto Escola Sem Partido é um deles. Inexequível, não deixa de funcionar como combustível para manter acesa a brasa que se formou durante a eleição.

Também fez esse papel, e pelo visto ainda o fará por muito tempo, a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves. Não que questionar a Teoria da Evolução, e por conseguinte a Ciência, seja café-pequeno como alardear as cores adequadas para meninos e meninas.

E, obviamente, não poderia deixar de citar o chanceler Ernesto Araújo quando se trata da fabricação de espantalhos. Contudo, o seu caso é um pouco mais grave: extrapolou a retórica e de fato levou o país a uma situação vexatória com a sua exclusão do Pacto Global de Migrações da ONU. Como se realmente precisássemos proteger as nossas fronteiras contra uma suposta invasão de imigrantes e não tivéssemos aqui uma proporção ínfima de estrangeiros (0,3%). Aliás, como se não existisse mais do que o dobro de brasileiros vivendo no exterior.

Eis que então surge esse decreto facilitando a posse de armas.

O presidente foi perspicaz em seu pronunciamento. Não deixou de citar o plebiscito de 2005, quando a maioria foi favorável ao comércio de armas e munições. E também não deixou de alfinetar as administrações petistas (no caso específico, o governo Lula) por não ter respeitado o desejo da maioria dificultando a aquisição de armamento.

Também salientou a necessidade de existência de um cofre ou “local seguro” para se guardar uma arma, especialmente em casas onde habitem crianças.

Todavia, não deixou de fazer suas carambolas retóricas, como quando aparentemente inaugurou a “bancada da legítima defesa”, popularmente conhecida como “bancada da bala”, e argumentou que o decreto visa permitir que “o cidadão de bem” possa ter “paz” dentro de casa.

Ora, ninguém precisa ser uma referência quando se trata de bom senso para deduzir que um plebiscito realizado há 14 anos talvez não reflita a preferência de uma sociedade nos dias atuais — na verdade, uma consulta realizada pelo Datafolha em dezembro último aponta que 61% dos brasileiros se dizem contra a liberação da posse de armas de fogo.

E nem tampouco gênio para sugerir que, em um país com índices alarmantes de assassinatos cometidos com armas de fogo — 70% de 60 mil homicídios por ano —, aumentar o arsenal pode piorar o problema.

A grande ironia é que, se os Estados Unidos da América mais uma vez serviram de referência, levando-se em conta o estreito relacionamento entre a Associação Nacional de Rifles (NRA) e o Partido Republicano, talvez valesse a pena olhar com cuidado para os índices de homicídios cometidos com armas por lá, sem falar nas seguidas chacinas, raramente impedidas, mesmo em partes do país que permitem alguma o porte de arma.

Há quem argumente em favor do governo, salientando que tanto a retórica quanto as ações adotadas até o momento foram anunciadas durante disputa eleitoral, mas é essa construção, não vem ao caso. Apenas funciona, isso sim, como o agasalho derradeiro para o último espantalho: não é o cumprimento da promessa que importa, mas a qualidade do que se propõe.

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