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Arte: Felipe Lima
Arte: Felipe Lima| Foto:

Em uma semana pesada, em que a tempestade se anunciava no horizonte – onde a esperança dos últimos quatro anos de que “com as próximas eleições as coisas vão se normalizar”? –, procurei abrigo em um livro de título sugestivo: Diário de um ano de trevas – Cartas de Alceu Amoroso Lima para sua filha madre Maria Teresa: janeiro de 1969 – fevereiro de 1970 (Instituto Moreira Salles). Ele, um homem religioso, intelectual respeitado, 76 anos, angustiava-se com o recrudescimento da ditatura militar, que com o AI-5, decretado em dezembro de 1968, avançava sobre as liberdades individuais.

As cartas diárias enviadas à filha relatam o que o pai vê no Brasil. Tendo inicialmente criticado o primeiro presidente militar pós-64, agora Amoroso Lima se pergunta quando poderá voltar a escrever nos jornais (naqueles dias, sob censura) “como nos tempos de Castelo Branco, de saudosa memória, como no caso da velha de Siracusa…” Ele irá citar esta personagem algumas vezes ao longo do “ano de trevas”.

Em um capítulo de seus escritos intitulado “Sobre alguns cuidados que devem ser tomados para que o rei não se torne um tirano”, Santo Tomás de Aquino conta que uma velhinha que morava na cidade de Siracusa, na Sicília, rezava com fervor pela saúde do odiado tirano Dionísio. Ao tomar conhecimento disso, Dionísio, que tinha consciência de sua impopularidade, quis conhecê-la. Na presença do tirano, a velhinha revelou candidamente seu pavor: desde criança havia visto um tirano suceder o outro, o novo sempre mais cruel que o anterior.  Baseada nessa única realidade que tivera a infelicidade de conhecer, a velha estava convencida de que o sucessor de Dionísio seria pior que ele. Por isso pedia aos deuses que o tirano vivesse mais que ela, que assim seria poupada de testemunhar ainda mais maldade e egoísmo.

As cartas de Amoroso Lima, o título do capítulo escrito por Tomás de Aquino, o medo da velha de Siracusa, este ano de trevas de 2018: tudo confirma que a história se repete, que é sempre esquecida e até negada.

Em busca de esperança, quero crer que, como deve ter acontecido em Siracusa, a vida das comunidades é feita de ciclos e um dia o ciclo da confusão e da maldade se encerra, devagarinho, e dá lugar a outro, mais pacífico e progressista. Volto às cartas de Amoroso Lima, que escreveu no dia 24 de julho de 1969 essas palavras que nos servem de alerta: “nem sabem que o futuro não equivale ao perfeito, mas apenas ao perfectível, na medida em que ‘os nossos atos nos seguem’ (Apocalipse), como nos seguem os nossos pecados desde o pecado original, fosse ele individual de um casal, fosse de toda a humanidade coletivamente”.

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Na campanha eleitoral, proliferaram os candidatos que colocaram a defesa da família como uma promessa de campanha. Oportunistas, a maioria, se não todos. Está em voga dizer-se defensor da família.

A família precisa ser protegida mesmo e são duas as grandes ameaças a ela: a primeira é o preconceito que pressupõe que toda família só é genuína e digna se enquadrada em um determinado modelo; e a segunda ameaça é a pobreza. De novo recorro aos livros (eu os amo e vejo como reserva de tudo que há de bom): “Aqui, uma verdade tornou-se clara para mim; que o culto idolátrico da família é falso e perigoso, mas que o respeito e a solidariedade na família são necessários”. Quem escreveu isso foi George Sand, em 1847. A frase está na autobiografia História da minha Vida (Editora Unesp), em que ela conta como as convenções sociais e morais da época dificultaram a união de seus pais.

Acabei de ler um outro livro que estuda uma grande mácula no universo do amor familiar, que é o abandono de bebês (A Piedade dos Outros, FGV Editora). O caso estudado foi o de Vila Rica, agora Ouro Preto, no século 18. O historiador Renato Franco mostra que o abandono de crianças acontecia em duas circunstâncias identificáveis: em casos de extrema pobreza dos pais e quando o nascimento acontecia fora dos padrões aceitáveis para a época, ou seja, quando se tratava de filhos de casais “amancebados”, de homens casados que mantinham amantes, de sacerdotes e de mulheres solteiras. Como o historiador coloca em vários capítulos, abandonar o filho em nome da honra era prática recorrente e aceita porque estava de acordo com as expectativas sociais. Este caso ilustra a colocação de George Sand: para não conflitar com a família idolatrada, sacrificava-se a solidariedade com os recém-nascidos.

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Conhecido o resultado das eleições, sugiro que façamos o possível para dar um pouco de paz ao país e a nós mesmos, começando por aceitar os resultados e não provocar os adversários (estejamos nós do lado dos vencedores ou dos vencidos). Afinal, uma eleição é só um capítulo de uma história cujo final está sempre aberto.

E, já que fiz tantas menções a livros e escritores, termino com o melhor de todos: “Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas”.

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