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Ilustração: Felipe Lima
Ilustração: Felipe Lima| Foto:

Tem chovido um pouco e graças a isso o rio Uvú, que andava quase seco, exibe uma lâmina d’água respeitável e um arremedo de correnteza. A poucos metros dele corre o Rio Cascatinha, que dá a Santa Felicidade ares de natureza selvagem. Os carros, os ônibus de turistas, os grandes grupos a caminho dos restaurantes passam sem ver. Se vissem, se surpreenderiam como eu me surpreendo.

Talvez o Uvú e o Cascatinha sejam um só. O mesmo curso d’água, dois nomes. Seja como for, os vejo nas minhas caminhadas e testemunho: é impressionante a presença de um rio na cidade, um curso d’água natural, não retificado, seguindo curvilíneo seu percurso que passa próximo das moradias, das rodovias, do comércio. Dia desses fiz uma foto: parei na Manoel Ribas, entre os restaurantes Cascatinha e Castelo Trevizzo. Lá embaixo, a água corria bonita, cercada pelo bosque. Enviei a imagem para amigos. “Está viajando?” – alguém me perguntou. “Em Curitiba!” – comentou outro. Sabia que iria surpreendê-los. Um rio no nosso caminho é um luxo.

Suponho que o Uvú e o Cascatinha continuem expostos (não sei se em toda a extensão), correndo a céu aberto em seus leitos de curvas suaves porque estão longe do Centro, em áreas da cidade de menor densidade demográfica. Tomara que, quando o mercado imobiliário e as vias expressas pressionarem, pense-se no Uvú e no Cascatinha como entidades cuja existência deve ser celebrada e não como estorvos a serem enterrados vivos. Enterrar rios, sabemos, é uma prática amplamente disseminada no Brasil. Embaixo do asfalto, eles são lembrados apenas quando as galerias subterrâneas transbordam, alagando a superfície. Longe dos olhos, os rios estão longe dos corações.

“Se as pessoas veem os rios, elas passam a valorizá-los e a se mobilizar por sua integridade”, escreveu a professora Norma Regina Truppel Constantino, do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em um estudo sobre a relação da cidade de São Paulo com seus cursos d’água. Por lá, como aqui, a maioria deles foi escondida embaixo do pavimento ou teve o curso alterado.

Curitiba é cortada por 476 rios e cerca de 80% deles são canalizados total ou parcialmente. Daí a surpresa dos meus amigos com a foto do Rio Cascatinha.

Leio que na Europa há uma tendência para retornar rios canalizados ao seu leito natural e “abri-los” onde estão enterrados. Leio também que onde a comunidade mostra interesse, há mais chance de o rio sobreviver. A vizinhança do Uvú e do Cascatinha tem se mostrado atenta ao estado de seus rios, agindo como guardiões de suas águas rasas, o que dá esperança a eles.

Nós, brasileiros, temos uma estranha relação com a natureza. Uma relação de indiferença que poderia ser classificada como bizarra em quem vive em um território tão rico em recursos naturais. Seria bizarra se a própria abundância não explicasse o desdém – coisa de crianças mimadas, que não valorizam o que têm como certo e garantido. Rios, água potável, fontes que brotam da terra no meio de um mato qualquer? Que diferença faz um a mais ou um a menos quando temos tantos?

Como crianças mimadas, vamos quebrar a cara.

Ao Uvú, afluente da margem direita do Rio Barigui que nasce no São Braz e que corre para o Iguaçu, desejo vida longa, muito mais longa que a minha, para que meus netos – tomara! – possam vê-lo um dia.

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