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José do Patrocínio. Foto: Wikimedia Commons
José do Patrocínio. Foto: Wikimedia Commons| Foto:

Quando chegou a hora da erupção, daquela cólera vingadora, toda a sociedade estremeceu, abalada, tomada de uma comoção entontecida. Nunca houve, no Brasil, uma voz que soasse tão alto, que ferisse tão fundo, que derramasse em torno de uma tão larga torrente de ódios, de sustos, de maldições, – e, ao mesmo tempo de esperanças e de bênçãos… E a raça negra viu aparecer o profeta esperado, o Messias anunciado nas eras, dentro de uma tempestade de raios e de flores, acendendo cóleras, pensando feridas, despedaçando grilhões, fulminando orgulhos, beijando cicatrizes, ateando a fogueira em que se havia de purificar o Brasil”. (Olavo Bilac)

É notório o meu fascínio por André Rebouças. Quem me conhece sabe de minha predileção – dentre todos os abolicionistas e posteriores militantes das causas do negro brasileiro – pelo engenheiro genial, professor dedicado, poeta idílico e mártir do povo. No entanto, hoje quero tecer algumas linhas sobre seu grande companheiro de luta, absolutamente inverso no temperamento, mas irmão de alma no amor pela liberdade do escravizado: José do Patrocínio, ou Zé do Pato, para os íntimos.

José Carlos do Patrocínio nasceu em Campos dos Goytacazes – terra do grande Nilo Peçanha, o primeiro presidente negro do Brasil – em 9 de outubro de 1853, filho do vigário João Carlos Monteiro com uma quitandeira, que alguns biógrafos dizem ter sido sua escrava, Justina Maria do Espírito Santo, com 15 anos à época. O vigário João Carlos era uma autoridade em sua província, conhecido por sua retórica fulgurante – dom que infundiria no filho não reconhecido –, segundo o jornalista Evaristo de Moraes, “dos melhores oradores sacros de sua época”, e por seu vício em jogatinas e mulheres. Apesar de jamais ter perfilhado o mestiço – “cor de tijolo queimado”, como ele próprio se definia –, deu a ele todo o aporte financeiro para que tivesse uma infância com certa regalia, e o sustentou por um tempo quando ele decidiu se mudar para a capital, em 1868, pouco antes de completar 15 anos.

José do Patrocínio, cujo sobrenome – não registrado no batismo, mas assumido por ele – foi composto de uma “homenagem” ao pai (Carlos) e uma referência ao dia de seu batismo (dia do patrocínio da Virgem Santíssima), foi um vulcão em erupção. Ainda na sua infância, um evento mudou completamente sua vida. Um dia, chegando em casa, a cavalo, com seu grande amigo Luiz Carlos de Lacerda – filho do famoso médico João Baptista de Lacerda, precursor das ideias eugenistas no Brasil –, que se tornaria um companheiro no movimento abolicionista, chamou, com rispidez e impaciência, um velho escravo para lhes abrir a porteira. O escravo, ou por conta da cansada velhice ou pelo tom petulante daquele mulatinho, demorou a cumprir a ordem, ao que Patrocínio desferiu-lhe um golpe com o cabo de prata do chicote, ferindo o pobre escravo a ponto de sua cabeça sangrar em profusão. O vigário, ao ficar sabendo do ocorrido, deu um sermão no filho bastardo, cujas palavras, conforme relata o jornalista Ernesto Sena, em seu artigo laudatório na revista Kosmos, em 1905, “calaram profundamente no coração de Patrocínio, e tal impressão produziram no seu espírito e na sua consciência que, disse ele anos depois, parecia que todo o seu ser se transformava repentinamente, que a razão lhe abria novos horizontes, iluminados pela suavidade de uma voz que era como a precursora do perdão e do arrependimento pela maldade praticada”.

A partir de então, o pequeno Zeca passou a, como diz outro de seus biógrafos, contribuir para o empobrecimento do pai, ajudando na fuga de escravos tanto da fazenda quanto da casa paroquial, chegando a enfrentá-lo, se atirando de uma escada, por não ver atendido seu pedido para que o feitor parasse de castigar um escravo.

Quero que atente um momento, caríssimo leitor, para a enorme contradição que permeia toda a história social de nosso país; contradição essa que faz de nossa sociedade, como diz Gilberto Freyre, “equilibrada nos seus começos e ainda hoje sobre antagonismos”. Temos aqui um garoto negro, filho de um padre “branco” (entre aspas, pois, ao que tudo indica, ele também era mestiço) com uma quitandeira (e, possivelmente, escrava) negra, que, ao castigar um escravo, é repreendido pelo pai que não o reconhece como filho, e passa a dar fuga aos próprios escravos, inclusive lutando contra o castigo que o próprio vigário lhes aplicava – atitude que censurou no menino. Como compreender essa sociedade sob categorias estanques e dicotômicas? Não é possível.

Ao chegar no Rio de Janeiro, conseguiu trabalho como aprendiz extranumerário da farmácia da Santa Casa de Misericórdia, admitido pelo Dr. Cristóvão dos Santos, diretor do hospital, que “achou certa originalidade no atrevimento infantil daquele rapazinho”. Um tempo depois, a Santa Casa passou às mãos das irmãs de caridade e Patrocínio se viu sem emprego e moradia. Mas foi ajudado pelo Conselheiro Albino de Alvarenga, que o conhecia de Campos e conseguiu para ele um emprego na Casa de Saúde do Dr. Batista dos Santos. Tendo perdido a mesada do pai, mas sendo ajudado por tais ilustres amigos, começou a estudar. Diz ele próprio como conseguiu a façanha de estudar com tão parcos recursos: “Com os da bondade extrema de meu exemplar mestre e amigo, o Dr. João Pedro D’Aquino, que de graça me franqueou o seu externato, onde não só estudei os preparatórios para farmácia, mas o exigidos para o curso médico”. Foi morar numa república, onde tinha amigos e também não precisou pagar. Mas teve suas pretensões de se tornar médico frustradas pela grande hostilidade do professor de Filosofia do curso preparatório, e, não conseguindo passar nos exames, formou-se na profissão mais modesta de farmacêutico. Durante seus estudos, também dava aulas particulares para complementar a renda.

Curiosa trajetória de alguém que, sem recursos, luta, com a ajuda sempre presente de amigos e benfeitores, e consegue realizar, com louvor, senão o sonho completo, aquilo que a circunstância permite.

Ao se ver desamparado por um amigo que lhe dava casa e comida, escreva ele: “Resolvi morrer de fome; não alugaria o título que me custou tanto sacrifício, e que representava as alegrias até então experimentadas. A minha carta de farmácia tinha três distinções, dadas por Morais e Vale, Domingos Freire, Ezequiel dos Santos, Souza Lima e Martins Teixeira, examinadores das provas”. Mas a sorte – ou a bênção de Deus – novamente lhe favoreceu. Foi convidado, por um amigo de externato, João Rodrigues Vila Nova, a passar um dia em sua casa. Passadas muitas horas em companhia da família Vila Nova, que lhe ouviu todas as desventuras com acurada atenção, foi convidado para pernoitar e não resistiu ao convite. Chegando no quarto que lhe destinaram, constatou, para sua absoluta surpresa, que este estava mobiliado com o que lhe pertencia. João Vila Nova e seu padrasto, o capitão Emiliano Rosa Sena, tinham feito sua mudança.

Na manhã seguinte, o capitão Sena ofereceu-lhe o posto de professor de seus filhos. Dessa atividade, desempenhada com esmero e muito profissionalismo, surgiu o casamento com Henriqueta Sena, a Bibi, filha mais velha do capitão.

Passou a trabalhar como jornalista e participar de reuniões republicanas. Em 1877, conseguiu emprego como articulista, em versos, do jornal Gazeta de Notícias, de Ferreira de Araújo. Mas não tinha lá o espaço necessário ao seu ímpeto abolicionista, que se radicalizava. Em 1881, morre o amigo Ferreira de Menezes, negro, abolicionista e dono da Gazeta da Tarde. Com a ajuda do sogro, compra o jornal do recém-falecido amigo e inicia ali a sua cruzada abolicionista, junto a Rebouças, João Clapp, Joaquim Nabuco e outros. O resto é história.

Como orador, Patrocínio era imbatível. Com isso, angariou fama e, também, muitos desafetos. Como nos diz Ernesto Sena: “Patrocínio tinha, pelo seu temperamento, pela alta generosidade de seu grande coração, a fraqueza de se deixar sugestionar facilmente quando em seu espírito pairava a suspeita de que lhe tentavam marear o brilho do ideal político, e então ninguém como ele sabia atacar de frente, arrogante e terrível, o adversário. Ninguém possuía, como ele, a facilidade na argumentação e a violência na linguagem, que ridiculariza, que acabrunha e que desorienta o inimigo debaixo de [um] sem número de imagens e comparações que muitas vezes definem por completo uma individualidade”. Numa polêmica com o filósofo Sílvio Romero, por exemplo, o chama de “teuto maníaco de Sergipe”, “Spenser de cabeça chata”, “macaco de Tobias Barreto” e “ex-Ramos” (pois o nome de batismo de Romero era Sílvio Vasconcelos da Silveira Ramos).

No entanto, era um homem que “não tinha ódios, não tinha rancores, a vingança era uma palavra fantasiosa e um sentimento que em seu coração jamais conseguiu penetrar”. Era um amigo leal e totalmente devotado.

Nos seus artigos, era implacável contra escravocratas, bem como contra os parlamentares que tanto atrasaram a “abolição total e sem indenização”. Foi republicano até o dia que a Coroa entrou na campanha abolicionista, e se tornou um “devoto” da Princesa Isabel, conferindo a ela o título de Redentora, e criando a Guarda Negra, a fim de protegê-la dos escravocratas vencidos. Foi o Tigre da Abolição. No dizer de Nabuco, “uma mistura de Spartaco e Camilo Desmoulins” ou o “tumulto feito homem”, como disse Araripe Júnior.

No golpe de 1889, tentou se reconciliar com os republicanos, mas foi rejeitado. Foi perseguido e exilado, por um tempo, na Amazônia, voltando às escondidas. Cada vez mais ostracizado, passa a se interessar por invenções. Protagonizou, com seu amigo Olavo Bilac, o grande poeta, em 1903, o primeiro acidente de automóvel do Brasil, com um carro francês que comprara; tentou construir um dirigível, mas nunca terminou. Morreu em 29 de janeiro de 1905, na pobreza, de tuberculose, em Inhaúma, bairro da zona norte do RJ.

Para terminar, gostaria de demonstrar a grande força retórica de José do Patrocínio, exemplificada num artigo de 13 de fevereiro de 1883, em plena campanha abolicionista, no qual se dirige diretamente ao Imperador D. Pedro II. Zé do Pato recorre à grande preocupação do Imperador com a cultura brasileira, evocando o grande prejuízo que a escravidão causava à identidade nacional e ao amor à pátria. Inicia ele:

Senhor:

Diante dos traços de mármore, sagrados pelo cinzel dos artistas, epitáfios seculares de civilizações mortas, o viajante, que estuda e pensa, se entristece com a própria grandeza do espetáculo que se desdobra aos seus olhos. Nos templos vazios, sem fiéis e sem deuses, como que ele ouve os risos e soluços dos dias de festa e de luto, das horas de regozijo e das horas de desesperança. Tal me acontece quando folheio a história da minha pátria, outrora templo grandioso formado pelo civismo de gerações fortes, que o tempo e as revoluções devoraram e de que hoje restam somente as ossadas, santas ruínas do patriotismo vitimado.

Após esse início devastador, Patrocínio evoca o valor supremo da liberdade – utilizando o lema da inconfidência mineira e símbolo da independência brasileira de 1822 – como direito radical e constitutivo de uma grande nação:

Outrora as almas brasileiras nutriam-se da consciência da soberania popular, fortaleciam-se com ela e não era raro ouvir-se do alto da forca, como do tamborete do fuzilando, estas frases heroicas: liberdade ainda que tarde; morrem os liberais, mas não morre a liberdade. Essas palavras eram adubo sagrado às convicções, repastavam de seiva e de viço a florescência da fé.

E chama a atenção a referência à Zumbi, como um anseio heroico porém fracassado de liberdade:

O patriotismo, é certo, ainda cria heróis, mas estes são a reprodução do intrépido Nzambi dos Palmares; desesperados que combatem olhando para a montanha do martírio, a Tarpéia sinistra de que se precipitarão para salvar a honra.

José do Patrocínio chama o Imperador à responsabilidade de sua posição, pois os dias são maus e os casos de violência estão aumentando:

[…] Vossa Majestade conserva-se impassível. Longe da corte, nas alturas de Petrópolis, cercado dos entes a quem adora, podendo espreguiçar-se como Francisco I e tiranizar como Luís XI, Vossa Majestade lança pelo desprezo o fermento da revolta nos espíritos dos raros que ainda entendem que a vida é pouco sem a honra.

Relata casos recentes de atrocidades cometidas contra escravos e apela para a intervenção do monarca. E termina num tom genial, contraditoriamente reverente e incisivo, demonstrando sua habilidade ímpar com as palavras:

Vossa Majestade vê que eu não me dirijo mais a ninguém. É com Vossa Majestade somente que eu me entendo. Sei que só vivo, porque Vossa Majestade não tem consentido no meu assassinato. Correspondo a esse favor fazendo-vos a súplica que aí fica. Eu não quero viver desonrado e Vossa Majestade sabe que no esterquilínio da polícia secreta há elementos para fazer pairar a dúvida sobre a reputação mais firmada. E só, imperial senhor.

No mais desejo que Vossa Majestade viva feliz e que nunca, nem por si, nem pelos seus, sofra as torturas infligidas à raça, de que Vossa Majestade bebe o sangue e as lágrimas sob a forma de lista civil.

Esse era José do Patrocínio, mais um personagem heroico de nossa história, cuja vida é um exemplo para todo aquele que não quer se ver limitado pelas circunstâncias, mas busca para si e para os outros, perseverantemente, o melhor, sabendo a hora de ser conciliador ou de, se necessário, desferir o golpe fatal da mudança.

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