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Domínio público / Acervo Arquivo Nacional
Domínio público / Acervo Arquivo Nacional| Foto:

“Certamente, quero afirmá-lo aqui, com toda a solenidade, nunca acreditei em visões, no sentido que se dá a esta palavra, pois a lembrança da minha indignidade, da minha miséria, nunca me abandonou, por assim dizer”. (Georges Bernanos, Diário de um pároco de aldeia)

“Quando conhecemos a miséria, suas misteriosas, suas incomunicáveis alegrias, os escritores russos, por exemplo, fazem-nos chorar”. (Georges Bernanos, Diário de um pároco de aldeia)

“Seja nobre e firme em suas provações; lembre-se de que pobreza não é defeito”. (Dostoiévski, Gente Pobre)

“O que te aflige? A pobreza, a indigência? Mas a pobreza e a indigência formam um artista. Elas são inevitáveis, no início”. (Dostoiévski, Niétotchka Niezvânova)

“Olhei o céu, a estrela Dalva já estava no céu. Como é horrível pisar na lama”. (Carolina Maria de Jesus, Quarto de despejo)

É impressionante como perdemos tempo na vida dando ouvido aos outros; o quanto somos mantidos na ignorância pela preguiça de nos certificarmos daquilo que ouvimos por aí, da boca de amigos, parentes e professores; ou mesmo nas novelas, filmes e livros. Isso é fruto daquilo que o filósofo Eric Voegelin – emprestando o termo de Alfred North Whitehead – chama de clima de opinião, aquele reducionismo tão característico da mente moderna, que tende a compreender tudo de maneira ideológica. A divisão do mundo em opressores e oprimidos, bem como a teoria da análise do discurso – para qual há sempre uma intenção, oculta e manipuladora, naquilo que é dito ou escrito –, ideologias praticamente hegemônicas no meio acadêmico e que já se cristalizaram na cultura, nos impedem, muitas vezes, de ultrapassarmos o burburinho a fim de tirarmos nossas próprias conclusões.

Dois exemplos – num dos quais, neste artigo, me concentrarei – tratam de elucidar o que quero dizer.

Tenho o livro Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, há bastante tempo. Mas tinha por ele o mesmo sentimento que tive, durante décadas, por Casa-grande & Senzala, de Gilberto Freyre, só que ao contrário. Enquanto Freyre tinha sido para mim o escritor racista, cujo mito da democracia racial – que depois descobri ser só uma tentativa de rotular a obra do sociólogo pernambucano – contribuía com a tese do branqueamento da população (?) e menosprezava o problema do racismo, Carolina era a escritora preta, favelada, empoderada e feminista, representante da literatura periférica que denunciava o racismo e a desigualdade social. E eu sabia de tudo isso sem ler os livros!

Sobre a crítica à Freyre já tratei em outro artigo, aqui, nesta Gazeta do Povo. Para mim, foi ele quem, provavelmente, melhor compreendeu o Brasil do ponto de vista de sua formação. Mas a inveja dos sociólogos uspianos venceu. É sobre Carolina Maria de Jesus que quero falar hoje.

Semana passada o Google criou um doodle – alteração temporária de seu logotipo a fim de homenagear alguém – da Carolina de Jesus, em comemoração aos seus 105 anos. Com isso, a escritora voltou a ser amplamente mencionada, sobretudo nas redes sociais. Resolvi, então, tirar o meu Quarto de despejo da estante e ler. Que surpresa! Primeiro porque me deparei com uma escritora extremamente habilidosa, que escrevia diários plenamente consciente de que fazia literatura. Segundo, porque encontro uma literatura vigorosa e poética, que mesmo incorrendo em erros de ortografia e gramática – ela só estudou até a segunda série do ensino fundamental –, usa as palavras com aquele cuidado próprio dos grandes escritores. Tais erros – que, atualemente, chamados assim entram na conta do tal preconceito linguístico – embelezam a leitura em vez de atrapalhar; transmitem a concretude da realidade. Sua crueza narrativa me lembra muito a que o imenso Georges Bernanos deu ao padre de Ambricourt, personagem principal de seu romance Diário de um pároco de aldeia.

Carolina enxergava o preconceito e a discriminação, e os descrevia cruamente: “…Os visinhos de alvenaria olha os favelados com repugnancia. Percebo seus olhares de odio porque eles não quer a favela aqui. Que a favela deturpou o bairro. Que tem nojo da pobresa”. Mas arremata: “Esquecem eles que na morte todos ficam pobres”. Também tinha, como não poderia deixar de ser, plena consciência da desigualdade social. Quarto de despejo inicia com uma afirmação contundente em relação a isso: “atualmente somos escravos do custo de vida”. Era crítica contumaz da vida na favela do Canindé, onde morou de 1948 a 1960; fazia, com isso, distinção entre ela e os demais moradores: “Tenho apenas dois anos de grupo escolar, mas procurei formar o meu carater. A unica coisa que não existe na favela é solidariedade”. Ou: “o desgosto que tenho é residir em favela”. E são frequentes as suas condenações ao vício do álcool: “Mas, é sabido que pessoas dadas ao vicio da embriaguês não compram nada. Nem roupas. Os ebrios não prosperam”. Ou: “Hontem eu bebi uma cerveja. Hoje estou com vontade de beber outra vez. Mas, não vou beber. Não quero viciar. Tenho responsabilidade. Os meus filhos! E o dinheiro gasto com cerveja faz falta para o essencial”.

Numa passagem emocionante, relata a discriminação e sua altivez em relação a ela:

…Eu escrevia peças e apresentava aos diretores de circos. Eles repondia-me:

– É pena você ser preta.

Esquecendo eles que eu adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rustico. Eu até acho o cabelo de negro mais iducado do que o cabelo de branco. Porque o cabelo de preto onde põe, fica. É obediante. E o cabelo de branco, é só dar um movimento na cabeça ele já sai do lugar. É indisciplinado. Se é que existe reincarnações, eu quero voltar sempre preta.

Não é impressionante que uma mulher cuja cor era uma espécie de estigma tivesse orgulho de ser negra?! Sim e não, pois Carolina tinha plena consciência de sua superioridade moral diante de muitos brancos – “Enfim, o mundo é como o branco quer. Eu não sou branca, não tenho nada com estas desorganizações” –, e não via o preconceito e a discriminação como fortalezas inexpugnáveis; afinal de contas, além do fato de os pais de seus filhos serem brancos, ela mantinha um bom relacionamento com outras pessoas brancas – inclusive o Dr. Zerbini, para quem trabalhou e de cuja biblioteca desfrutou – ou seria devorou? – no período em que morou em sua casa. Mas creio, também, que ela sabia que sua cor, embora símbolo de uma condição de inferioridade por conta de nossa herança escravista, não estava vinculada à sua situação econômica – e cultural. Em 13 de maio de 1958, ela registra:

Hoje amanheceu chovendo. É um dia simpatico para mim. É o dia da Abolição. Dia que comemoramos a libertação dos escravos. …Nas prisões os negros eram os bodes espiatorios. Mas os brancos agora são mais cultos. E não nos trata com despreso. Que Deus ilumine os brancos para que os pretos sejam feliz.

E quando faz acusações relacionadas à cor, faz questão de distinguir: “E há certos brancos que transforma o preto em bode expiatorio” (grifo meu). Mas evidencia a desigualdade: “O Brasil é predominado pelos brancos. Em muitas coisas eles precisam dos pretos e os pretos precisam deles”.

Ou, ainda, exalta sua cultura diferenciada em relação às mulheres casadas da favela, que apanhavam dos maridos: “A noite, enquanto elas pede socorro eu tranquilamente no meu barracão ouço valsas vienenses”.

Tudo isso é fruto de uma independência criada à base de sofrimento, um sofrimento dilapidado à base da educação que recebeu da mãe – “ela formou o meu caráter” –, bem como da imaginação moral adquirida com a literatura: “Ontem eu li aquela fabula da rã e a da vaca. Tenho a impressão que sou rã. Queria crescer até ficar do tamanho da vaca”. Carolina era uma mulher independente, mas não por ser feminista – como gostam de dizer; mas porque tinha como prioridade a literatura – “um homem não pode gostar de uma mulher que não pode passar sem ler. E que levanta para escrever. E que deita com lápis e papel embaixo do travesseiro” – e seus filhos. Mesmo, às vezes, se apaixonando e vendo como seus filhos ansiavam por um “pai”, lembrava da responsabilidade que havia assumido para si e recuava:

O senhor Manoel chegou. Deu-me 80 cruzeiros, eu não quiz pegar. Procurei as crianças para tomar banho. Ficaram alegre quando viu o senhor Manoel. Eu disse para o senhor Manoel que ia passar a noite escrevendo. Ele se despediu e disse:

– Até outro dia.

Nossos olhares se encontraram e eu lhe disse:

– Vê se não volta mais aqui. Eu já estou velha. Não quero homens. Quero só os meus filhos.

Ele saiu. Ele é muito bom e iducado. E bonito. Qualquer mulher há de gostar de ter um homem bonito como ele é. Agradável no falar.

Outro aspecto importantíssimo, que os estudiosos tendem a tratar como uma profunda contradição de Carolina de Jesus, são seus julgamentos de ordem moral e seu linguajar, muitas vezes discriminatório em relação a nordestinos e aos próprios negros; bem como sua postura em relação à vida conjugal, alcoolismo e comportamento social. Por conta da demonização de tudo que se relaciona aos termos conservador ou conservadorismo, seus críticos e biógrafos relatam essa característica como algo ruim. As professoras Marília Novais da Mata Machado e Eliana de Moura Castro, em seu livro Muito bem, Carolina, biografia pioneira da escritora, veem Carolina de Jesus como: “’uma personagem instável’, com ‘contradições e incoerências’, que nunca se conformou com a vida na favela, nunca se identificou com os outros favelados, cuja indolência e conformismo criticava. Percebia-se como culturalmente mais bem aquinhoada que os vizinhos, mas só pela escrita podia se afirmar como tal. Era cheia de contradições, em todos os níveis – social, cultural, psicológico. Mulher negra, tinha preconceito contra negros. E contra nordestinos. Identificava-se mais com a classe dominante. Nutria ideais de moralidade e exigências de comportamento, se não incompatíveis, pelo menos em desacordo com a vida da favela. Sua visão de mundo era basicamente conservadora. (…) Sair da favela é o sonho de Carolina, ir morar numa casa de alvenaria, libertar os filhos e a si mesma da opressão e da miséria. Sair do chiqueiro, sair do inferno”. (Retirado daqui)

Eu só queria entender por que ela “identificava-se mais com a classe dominante”, ou por que suas posições estavam “em desacordo com a vida da favela”. Carolina critica contundentemente a classe dominante – os políticos; e suas posições estavam de acordo com a educação que recebeu e com sua própria consciência. Tão simples quanto isso. Ou seja, ela vivia na favela, mas a favela não vivia nela, e isso é absolutamente normal. Se suas observações em relação aos próprios negros, aos nordestinos e outros parecem preconceituosas hoje, é porque retratam uma mentalidade praticamente geral da época, bem como uma concepção bastante realista de como o, digamos, caráter extrovertido do negro poderia prejudicá-lo – como fez muitas vezes.

José Correia Leite, um dos mais destacados militantes do movimento negro, fundador da Frente Negra Brasileira e do Jornal Alvorada, escreveu, em 1947: “Sim, o negro tornou-se um fatalista, sempre viveu em crise e nas mais duras e amargas adversidades. Por isso, essa questão de estabilidade econômica ou social, universalmente falando, pouco ou nada lhe tem interessado”. No ano seguinte, denunciou que uma festa de 13 de maio teria descambado para o “pagode”, distraindo a militância negra de seus objetivos: “Pagode e idealismo são coisas perfeitamente distintas, e – dada a diversidade de suas virtudes – não se misturam, mesmo que o pagode de engalane, se vista dos títulos mais elevados, a sua concepção é nula e chula”.

Seria Correia Leite um “alienado”, tal qual Carolina foi para o historiador comunista Joel Rufino dos Santos?

Não foi Alberto Guerreiro Ramos, um dos maiores intelectuais negros brasileiros, que disse, em seu ensaio O problema do negro na sociologia brasileira, publicado na década de 1950, ser necessário “‘descomplexificar’ os negros e mulatos, adestrando-os em estilos superiores de comportamento, de modo que possam tirar vantagem das franquias democráticas, em funcionamento no país”? Era Guerreiro Ramos um alienado?

Se Carolina Maria de Jesus era conservadora, não é porque era alienada ou mesmo traidora de sua raça (ou classe), mas simplesmente porque cria, instintivamente, como todo mundo, que há uma ordem moral permanente, baseada numa tradição – nesse caso, a tradição ocidental, também demonizada por pesquisadores militantes – que deve ser respeitada para a boa convivência social; porque sabia que a prudência é uma virtude essencial para quem deseja sobreviver em meio às adversidades; e porque tinha plena consciência de suas imperfeições, de suas falhas, e buscava melhorá-las sendo exemplo, sobretudo, para seus filhos. Sua filha, Vera Eunice de Jesus Lima, professora (realizando o sonho da mãe) e responsável por ser a biografia viva da escritora, é um exemplo cabal de seus ensinamentos. Se a ordem moral vigente era sufocante para pessoas como Carolina, ela sabia que não adiantava se revoltar – “hoje em dia, quem nasce e suporta a vida até a morte deve ser considerado heroi” –, embora tivesse seus momentos de rebeldia. Mas lutou com sua arma mais eficiente: a literatura. E venceu através de sua arte.

Por isso, ler Carolina Maria de Jesus – sobretudo Quarto de despejo – é ler não uma mulher cheia de rótulos – feminista, preta, pobre, favelada, periférica –, mas ler um ser humano heroico e trágico, uma mulher que, contra todas as expectativas, construiu uma obra profunda, repleta de poesia e verdade, absolutamente extraordinária. Há muitas outras Carolinas por aí, mas o relato contundente de Quarto de despejo pertence ao legado imorredouro de Bitita.

Ave, Carolina!

(PS.: Mantive, nas citações, a grafia da autora.)

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