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"Desembarque de Pedro Álvares Cabral em Porto Seguro em 1500", Oscar Pereira da Silva (1865–1939). Reprodução.
"Desembarque de Pedro Álvares Cabral em Porto Seguro em 1500", Oscar Pereira da Silva (1865–1939). Reprodução.| Foto:

“Podemos até descrever a cultura simplesmente como aquilo que torna a vida digna de ser vivida”. (T. S. Eliot)

Nos comentários ao meu artigo da última semana, um generoso leitor agradeceu o estilo de meus escritos, dizendo que as costumeiras referências artísticas – sobretudo literárias, cinematográficas e musicais – eram um diferencial digno de nota. Agradeci e agradeço a percepção acurada do leitor, e gostaria de aproveitar a ocasião para assentar melhor alguns fundamentos de minha concepção de Cultura (já tratada de forma não sistemática em outros artigos) e por que a considero o único caminho para a restauração de nosso querido Brasil.

O termo cultura, atualmente, abarca, não sem grande controvérsia, muitos significados; desde o sentido clássico, de cultivo e culto, ao moderno, desenvolvido pelos filósofos iluministas do séc. XVIII, e que hoje, de modo elástico, pode significar qualquer coisa.

Iniciemos, inversamente, por compreender a concepção atual de Cultura – inclusive adotada pelo Ministério da Cultura (Minc) e pelo Ministério da Educação (MEC) –, que trata o conceito de maneira antropo-sociológica; algo como “o conjunto dos modos de vida criados, adquiridos e transmitidos de uma geração para a outra, entre os membros de determinada sociedade”, como nos informa Nicola Abbagnano em seu Dicionário de Filosofia (Martins Fontes). Marilena Chaui, em seu livro Convite à Filosofia, que serve de base para o currículo de Filosofia do ensino médio, faz uma longa análise do conceito de cultura, e consagra os dois sentidos mais influentes na atualidade:

1) Sociológico, no qual a cultura é: “a maneira pela qual os humanos se humanizam por meio de práticas que criam a existência social, econômica, política, religiosa, intelectual e artística”;

2) Antropológico, que consiste na “invenção da ordem simbólica”:  “o modo dos seres humanos atribuírem à realidade significações novas por meio das quais são capazes de se relacionar com o ausente: pela palavra, pelo trabalho, pela memória, pela diferenciação do tempo (passado, presente, futuro), pela diferenciação do espaço (próximo, distante, grande, pequeno, alto, baixo), pela diferenciação entre o visível e o invisível (os deuses, o passado, o distante no espaço) e pela atribuição de valores às coisas e aos homens (bom, mau, justo, injusto, verdadeiro, falso, belo, feio, possível, impossível, necessário, contingente)”.

São conceitos que tratam a cultura como patrimônio cultural, que, na Constituição Federal, significa: I – as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; e V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

A abrangência do conceito impressiona, mas não sem motivo. Chaui, após todas as ponderações, conclui – numa crítica ao conceito clássico de cultura (que veremos em seguida):

Estamos, agora, em condições de perceber porque as frases de nosso cotidiano sobre “cultos” e “incultos” indicam preconceitos e não conceitos. Que preconceitos?

– Aquele que ignora que, em sentido antropológico e histórico, todos os humanos são cultos, pois são todos seres culturais;

– Aquele que reduz a Cultura à escola e às belas-artes, sem se dar conta de que aquela e estas são efeito da vida cultural e um dos aspectos da Cultura, mas não toda a Cultura;

– Aquele que, partindo da Cultura como cultivo do espírito (obras de pensamento e obras de arte), ignora que a separação entre “cultos” e “incultos”, em sociedades divididas em classes sociais, é resultado de uma organização social que confere a alguns o direito de produção e acesso às obras, negando-o a outros, de tal maneira que, em lugar de um direito, tem-se, de um lado, privilégio e, de outro, exclusão. Em outras palavras, usa-se a Cultura como instrumento de discriminação social, econômica e política.

Ou seja, a interpretação que Chaui consagra em seu livro, irrigando com ele todo o currículo do ensino básico brasileiro, nada mais é que o conceito marxista de cultura. Dentro dessa concepção, a cultura deixa de ser um bem de cultivo para se tornar um bem de consumo. Porém, de consumo elitizado. O caráter espiritual é trocado pelo caráter econômico, e somente as classes privilegiadas têm “acesso” à cultura, enquanto os pobres têm esse “direito” negado. Isso justifica, por exemplo, a existência do Ministério da Cultura, que administra o patrimônio cultural da sociedade a fim de fazê-lo acessível a todos. Desse modo, a Constituição de 1988 diz:

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.

§ 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.

§ 2º A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais.

Portanto, cultura, atualmente, significa as “formas de ser” de uma sociedade. Ou seja, qualquer coisa, mesmo. Diante dessa concepção, caríssimo leitor, eu e você não participamos de uma comunidade espiritual onde a cultura é produzida e cultivada por todos. Por isso, a ideia de uma elitização da cultura, que privilegia algumas pessoas em detrimento de outras, criou a necessidade de defender tal visão através do Estado, transformando a cultura em assunto político.

Diante disso, o poeta e crítico literário T. S. Eliot nos adverte, em Notas para uma definição de cultura (Perspectiva):

Observamos, atualmente, que a “cultura” atrai a atenção dos políticos: não que os políticos sejam sempre “homens de cultura”, mas que a “cultura” é reconhecida como um instrumento de política, e como algo socialmente desejável que cabe ao Estado promover. […] O fato de ter a cultura, de alguma forma, se tornado um departamento da política não deve obscurecer em nossa memória o fato de que, em outros períodos, a política foi uma atividade praticada dentro de uma cultura, e entre representantes de culturas diferentes.

Porém:

O tipo de teoria política que surgiu nos tempos realmente modernos está menos preocupada com a natureza humana, que tende a tratar como algo que sempre pode ser reformulado para adaptar-se a qualquer que seja a forma política considerada mais desejável. Seus dados reais são forças impessoais que podem ter-se originado no conflito e combinação das vontades humanas, mas têm de substituí-las. […] Estando ocupada com a humanidade apenas na massa, tende a separar-se da ética; estando ocupada apenas com aquele período recente da história durante o qual se pode mostrar mais facilmente que a humanidade foi governada por forças impessoais, ele reduz o próprio estudo da humanidade às duas ou três últimas centenas de anos do homem.

Conclui-se, dessas observações de Eliot, que a cultura, transformada em responsabilidade política, diminui – e muito! – o seu sentido profundo e original. E torna-se um tema facilmente manipulável para satisfazer interesses políticos. Estamos imersos nisso, infelizmente.

Já a concepção clássica de cultura, difundida pelos gregos – e vigente por mais de dois milênios – tem como finalidade a formação da sociedade. A paidéia (educação) era, sobretudo, transmissão de cultura, calcada nos mais sublimes valores da humanidade. Nas palavras de Werner Jaeger, um dos maiores especialistas em cultura grega, em seu célebre Paidéia – a formação do homem grego (Martins Fontes):

Todo povo que atinge certo grau de desenvolvimento, sente-se naturalmente inclinado à prática da educação. Ela é o princípio por meio do qual a comunidade humana conserva e transmite a sua peculiaridade física e espiritual […] Uma educação consciente pode até mudar a natureza física do Homem e suas qualidades, elevando-lhe a capacidade a um nível superior. Mas o espírito humano conduz progressivamente à descoberta de si próprio e cria, pelo conhecimento do mundo exterior e interior, formas melhores de existência humana.

Desse modo, notamos que o sentido primitivo e profundo de cultura abarca o sentido de educação como formação. No sentido etimológico de cultivo e culto, a cultura diz respeito àquilo que o ser humano deve cultivar, preservar, aprimorar e reverenciar. Trata-se do cultivo do espírito e do culto ao que é Belo e Bom: ou o Sumo Bem – na concepção grega de Platão apresentada na Alegoria da Caverna – da qual tratei em artigo anterior.

Mais recentemente, essa concepção ganhou o nome de alta cultura – em contraste com a cultura popular.

Alta cultura, segundo o filósofo Roger Scruton em Modern Culture (Bloomsbury), é “fonte de sabedoria prática”. Diz ele:

É meu ponto de vista que a alta cultura de nossa civilização contém conhecimentos que são muito mais significativos do que qualquer coisa que possa ser absorvida pelos canais de comunicação popular. Esta é uma crença difícil de justificar, e mais difícil ainda de conviver. Na verdade, não há nada a ser recomendado para além de sua verdade.

Isso não significa que as duas culturas não possam conviver, mas que há uma distinção de valor entre elas. A alta cultura relaciona-se com uma tradição, com a preservação de um legado cultural que atravessa gerações e tem um sentido elevado no qual as civilizações estão espiritualmente não só ligadas, mas sustentadas. Diz Scruton: “Uma Alta Cultura é uma Tradição, na qual os objetos produzidos para a contemplação estética renovam, através de seu poder alusivo, a experiência de pertencimento”.

Essa concepção elevada de Cultura, valorativa e hierarquizada, está ligada às origens das sociedades através da dimensão religiosa que elas carregam. T. S. Eliot disse que “nenhuma cultura apareceu ou se desenvolveu a não ser em conjunto com uma religião”. E não é difícil perceber isso; basta olharmos para a História que veremos a religião como o grande elo civilizador; quanto mais antiga, mais religiosa será a sociedade. A vida do homem primitivo era mergulhada em religião, e a riqueza de suas realizações estava justamente em sua sensibilidade para o culto, para a valorização de algo maior e mais importante, que moldava a sua existência.

Porém, esse ideal de alta cultura passou a ser rejeitado justamente quando os valores religiosos entraram em declínio. Ao contrastarmos as concepções clássica e moderna de cultura, vemos naquela algo superior pelo qual tanto indivíduos quanto grupos e a sociedade como um todo (divisão adotada por Eliot), em toda a história da humanidade, desde os primórdios até agora, lutam para preservar, aprimorar e transmitir. Isso significa que, de acordo com essa visão, estamos claramente involuindo; estamos menos cultos. Talvez não menos inteligentes, mas certamente menos sábios. E o futuro de uma sociedade só pode ser preservado por uma cultura sólida e duradoura, capaz de transmitir às próximas gerações um legado espiritual que elas podem (e devem) almejar para si.

É hora de religarmos o Brasil à sua valiosa tradição cultural, não desprezando seus elementos europeus ou supervalorizando seus elementos “nativos” – como querem os classistas ressentidos –, mas reconhecendo em seus antagonismos a verdadeira riqueza de nosso país!

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