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A série russa Trotsky, disponível no Netflix, vem sendo criticada por suas virtudes. No Estadão, Pedro Venceslau lamentou o retrato do protagonista como um homem mau – ou “oportunista, machista, arrogante e perverso”, segundo a manchete. O crítico ressalta ainda que a obra desagradou a líderes do PSTU. A ficha criminal de Carlos Alberto Brilhante Ustra é mais parecida com a de Irmã Dulce do que com a de Trotski. Fico me perguntando se, ao resenhar uma cinebiografia de Ustra, Venceslau lamentaria o excessivo foco nos defeitos do protagonista, destacando a opinião do Sargento Fahur.

Lev Davidovich Bronstein (1879-1940) tornou-se um mito da história humana como Trotski, nome que ele escolheu para atuar em sua primeira e única profissão: revolucionário. De um tipo cada vez mais raro: que realmente faz revoluções.

Fosse um personagem fictício, o roteirista seria criticado pelos exageros. Trotski foi, em uma só vida, líder de uma revolução fracassada em 1905, jornalista de renome internacional, comandante da derrubada do governo menchevique em outubro de 1917, negociador do tratado que retirou a Rússia da Primeira Guerra Mundial, fundador do Exército Vermelho, comandante vitorioso na guerra civil dos anos seguintes e, principalmente, intelectual que tocou corações dos mais diversos, como os de operários russos nos anos 1910, Paulo Francis, Christopher Hitchens, Reinaldo Azevedo, Antonio Palocci e Irving Kristol.

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Trotsky, maior sucesso entre diversas produções russas que usaram o centenário da revolução bolchevique como mote, arrisca ao centrar o roteiro em Bronstein, o ser por atrás do codinome mítico. Em 8 episódios, Trotski é apresentado como um homem de inteligência notável, mestre na arte da persuasão, obstinado, avesso às mesquinharias do poder e sincero nos seus propósitos de libertar a humanidade, mas também vaidoso, grosseiro, assassino sem remorso, fundamentalista prepotente e péssimo pai.

Esse acerto permite que a série simultaneamente informe, entretenha e reflita sobre uma das mais destrutivas faces do mal. Leon Trotski não se limitou a cometer crimes. Como intelectual, ele propôs um novo código moral, a moral revolucionária, justificando os próprios crimes. Mais do que desumano, ele se cria como super-humano. Em certos momentos, parece que o roteirista leu Raymond Aron.

Há problemas, alguns até apontados pela imprensa. Certas caracterizações de época parecem pouco críveis. Frida Kahlo conversa em russo fluente com seu amante. Diversos vícios esperados para uma obra da TV aberta estão lá. Mas tudo isso é detalhe nas críticas de Pedro Venceslau e acadêmicos ofendidos pelo retrato feio, ainda que grandioso, daquele que admiram impiedosamente. Venceslau ficou incomodado mesmo com o suposto machismo imputado a Trotski pela série.

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Há falas em que Trotski, cortejando sua futura esposa, defende a autonomia da mulher sobre o seu corpo. Nos meses finais de vida, defende que, se ele teve um caso com Frida Kahlo, sua esposa tem o direito de fazer o mesmo, pois é um ser livre.

Trotski também diz que a revolução é como a sedução de uma mulher, pois exige uma fria análise sobre o momento de agir. Sugere ainda que as massas têm psicologia feminina, pois não tomam iniciativa, exigindo dos revolucionários a postura de sedutores. Venceslau parece exigir que um comunista em 1902 seja retratado como uma feminista no Twitter em 2018. Apesar da linguagem incomum para a esquerda contemporânea, Trotski aparece como um homem até progressista para os padrões do seu tempo. As acusações parecem refletir, antes de mais nada, um establishment cultural cada vez menos acostumado a ouvir sobre gênero sem denunciar machismo.

O espectador deve esperar a mesma precisão histórica de Narcos, The Darkest Hour, O Mecanismo ou Bohemian Rhapsody. Há fatos alterados, especialmente na personagem de Frank Jacson.

O roteiro se desenvolve através dos diálogos entre Trotski e Jacson, que na série apresenta-se como jornalista stalinista interessado em escrever um livro sobre o revolucionário russo. O encontro se dá no México de 1940, pouco antes da picareta de Ramon Mercader. É um momento ideal para que se apresente um homem eternizado ainda em vida, em seu momento mais decadente desde 1917, uma melancolia que traz a unicidade de Bronstein, o mortal por trás de Trotski, para o centro da trama.

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Jacson frequentemente expõe imoralidades do entrevistado, o que rendeu acusações de stalinismo ao roteiro. A bem da verdade, Stalin mandaria matar quem repetisse as versões apresentadas pela série sobre a Revolução Russa, as disputas políticas entre bolcheviques ou as últimas opiniões de Lenin sobre seu sucessor. Críticas a Trotski não bastam para que a obra seja rotulada como stalinista.

Os choques entre o stalinismo de Jacson e o grande rival russo de Stalin permitem que a história de Trotski surja sempre em tensão crítica. Jacson, que nos diálogos representa a visão majoritária da esquerda de 1940, expõe seu entrevistado com críticas duras, que trotskistas certamente não gostaram de ouvir. Mas é um exagero sugerir que a série apresenta Jacson como mocinho virtuoso. Em diversos momentos, falas sobre Stalin ter criado um paraíso terreno parecem colocadas de forma propositalmente crua, para que nos assustemos com afirmações tão ridículas.

Em seus pontos altos, a série é convincente em mostrar que Bronstein é peça-chave para entender, com a profundidade que o assunto merece, a vileza de Trotski. A crônica racionalização do mal, o intelectual que dá a si o privilégio da imoralidade justificada, os valores básicos do ser humano por trás do mito são mais importantes do que a fria descrição de crimes contra a humanidade. A relação de Bronstein com seus filhos diz mais do que seus piores crimes.

Nas reclamações da esquerda universitária e de críticos da grande imprensa, é patente o desejo de matar a complexidade de Bronstein e os detalhes da sua biografia. Exigem que a série se limite ao mito, repetindo o efeito da picareta de Mercader. Há um poder indiscutível na simples observação do homem que negligenciou seus filhos enquanto brincava de Deus. Ele precisa ser apagado. Há mais stalinismo nessa atitude do que em qualquer diálogo da série.

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