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Ao saber que os escritores Lourenço Mutarelli e Marcelo Mirisola trocaram carinhos brutos durante um evento literário do interior, minha primeira reação foi (reconheço envergonhadamente) cínica. Afinal, qual a chance de uma troca de socos entre escritores aparecer no noticiário em meio à campanha eleitoral? Tinha que ser tão-somente um golpe publicitário de dois escritores sem vontade de desaparecer como o menino do Acre.

Mas o tempo passou e, com ele, meu cinismo. De repente, me peguei refletindo sobre o soco (ou socos ou pontapés ou sei lá que tipo de agressão física) e o significado desse embate para a literatura nacional. Não que o Universo vá entrar em colapso e o comitê do Nobel vá se reunir às pressas só porque dois escritores brasileiros trocaram uns sopapos. Estou falando da simbologia do soco, tanto o dado quanto o recebido, levando em conta não só os lutadores quando o cenário da luta. 

Coincidência ou não, pouco antes de ficar sabendo da briga li uma entrevista na qual Mutarelli reclamava da falta de dinheiro, do descaso do público, da sociedade e do governo para com a literatura, aquela ladainha toda. De Mirisola não ouço falar há algum tempo, desde que ele encarnava o enfant terrible eternamente injustiçado do beletrismo nacional. Talvez ele tenha mudado, mas o próprio soco leva a crer que não. 

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Ou seja, tanto Mutarelli quanto Mirisola, sem falar no tal evento literário do qual eles participavam, são nomes marginais – e aqui uso o termo com todo o cuidado do mundo. Não que sejam criminosos. Longe disso! São marginais porque estão à margem, ou se dizem à margem, ou gostam de ser vistos como à margem, ou ainda porque, se têm suas obras publicadas pelas principais editoras do país e se ganham prêmios e se são convidados para festivais literários onde podem trocar insultos e socos é porque estão, para todos os efeitos, à margem. 

Em condições normais, portanto, esse soco deveria ser ignorado porque foi dado (e recebido) por dois escritores à margem. Mas e se eu disse que a literatura brasileira toda está à margem? Daí os dois personagens se tornam relevantes dentro dessa grande irrelevância que é a literatura brasileira. Eles se tornam o Llosa e o García Márquez de um realismo fantástico muito próprio do Brasil. Um realismo tão fantástico, tão mágico que temos mais editoras e escritores do que leitores. Ah, muito mais. 

E é nesse Universo próprio (só nele) que um soco entre duas figuras marginais, autores de obras marginais, ganha relevância. Ao que consta, Mirisola estava fazendo o rapapé tradicional, isto é, lendo um trecho de seu livro para nele encontrar semelhanças supostamente laudatórias com a obra de Mutarelli, quando foi surpreendido com o soco. Depois, Mutarelli teria se arrependido como quem se arrepende de matar uma barata. Mirisola, por sua vez, disse não ter entendido nada. O que, pensando bem, faz mais sentido do que parece. 

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Mas não houve provocação ou xingamento? Não houve acusação de desvios de recurso da Lei Rouanet ou de injustiça naquela importante premiação da Academia Piraporense de Letras? Não. Que os dois escritores tenham se engalfinhado em meio a uma troca de afagos é simbólico demais para que se ignore. Por dois motivos. Primeiro porque a literatura brasileira (não é de hoje) se resume a isso: afagos, rapapés, bajulações. Não há ideia e muito menos imaginação; não há estilo ou inventividade. O que há é um grupo de gênios que se amam ou se odeiam de acordo com a conveniência. 

Depois porque o episódio mostra que, à margem ou não, os “intermediários da imaginação” brasileiros se renderam à pliniomarcusação do espírito das letras, chafurdando numa literatura que é baixa porque vê beleza na baixeza, que é rude porque vê nisso um caminho para a elevação, que dá as costas para a relevância transcendental da arte porque estão mais preocupados com a glória mundana de suas obras. 

E que, por assim serem e assim estarem, resolvem divergências como dois meninos que, num parquinho de brinquedos enferrujados, recoberto por uma mistura de areia e coliformes fecais, tentam chamar a atenção dos “adultos” expressando fisicamente a perversidade própria de crianças que não podem, porque não sabem, conviver com o diferente.

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