Chegou a hora de Jon Fosse no Brasil. Ganhador do Nobel da Literatura em outubro passado, o escritor norueguês tinha apenas uma obra disponível em português quando recebeu a honraria – isso sem contar com Melancolia, publicada em 2015, porém fora de catálogo e sem reimpressão desde aquela época. Agora, quatro de seus trabalhos contam com tradução para a nossa língua e podem ser encontrados em livrarias pelos leitores mais ávidos. Para quem ainda não leu nada de Fosse, É a Ales (Companhia das Letras) pode ser o melhor lugar para adentrar seu universo.
Com apenas 108 páginas, o romance conta a história de uma família a partir de Signe, mulher que relembra a noite em que seu marido, Asle, saiu para passear em um barco e nunca mais voltou. Com idas e vindas no tempo, a narrativa sobre os laços familiares retrocedem até a tal da Ales que dá nome ao livro, personagem que é a trisavó do homem desaparecido. Traçar essa trajetória genealógica é importante para o objetivo da obra, que mostra os efeitos do tempo, do ambiente e dos eventos marcantes de uma família em cinco gerações diferentes.
A Academia Sueca, responsável pelo Nobel, justificou que a escolha de Fosse se deu por conta de sua “prosa inovadora que dá voz ao indizível”. É a Ales, publicado no idioma original em 2010, sintetiza bem esse estilo único. O norueguês coloca forma em primeiro plano, criando um terreno que não será tão estranho para quem leu algo da trilogia de Samuel Beckett, composta pelos livros Molloy, Malone Morre e O Inominável, por exemplo.
Fosse privilegia o formato de fluxo de consciência, a repetição de ideias, a ausência de pontos finais ou capítulos e a mistura entre passado e presente em um mesmo parágrafo ou até na mesma frase. Tais escolhas podem assustar quem está acostumado a um formato mais tradicional e linear. Contudo, elas se justificam no desenrolar da história, fazendo com que o leitor acabe hipnotizado pela narrativa do norueguês.
Isso fica evidente no trecho destacado pela Companhia das Letras na edição brasileira: “Depois que ele desapareceu e nunca mais voltou nada mais foi o mesmo, ela simplesmente está aqui, porém sem estar aqui, os dias chegam, os dias passam, as noites chegam, as noites passam e ela os acompanha, sempre com movimentos vagarosos, sem permitir que nada deixe grandes marcas ou faça grande diferença”.
Devoto do minimalismo
Outro aspecto importante é a forma como os diálogos dos personagens de Fosse ocorrem. Na Europa, o autor é muito conhecido por sua produção dramatúrgica, experiência que impacta diretamente na maneira como as conversas se dão em seus romances. Quando Signe e Asle ou outros trocam palavras entre si, tudo se desenrola em tempo real, como se o leitor estivesse assistindo a uma encenação daquilo. A escrita das falas, porém, é minimalista, com frases curtas e diretas.
Essa abordagem é certeira para seus romances, pois oferece momentos de respiro ao leitor entre os grandes fluxos de consciência, tornando as conversas ainda mais impactantes para o enredo. As falas mais secas, que remetem ao estilo do dramaturgo conterrâneo Henrik Ibsen, ajudam a demonstrar sem palavras o desconforto que existe entre seus personagens, “dando voz ao indizível”, como bem colocou a Academia Sueca.
O ideal, até pelo tamanho da obra, é que tudo seja lido de uma vez só. E isso não vale somente para este trabalho de Jon Fosse. Os outros três livros disponíveis, Brancura, Trilogia e A Casa de Barcos, também podem ser consumidos numa tarde em que o leitor disponha de um tempo extra para si (embora os dois últimos citados tenham divisões entre capítulos e partes, oferecendo maior flexibilidade para interromper o texto). A obra do norueguês se beneficia quando há uma imersão completa do leitor – ou seja, nada de pegar É a Ales para ler entre uma estação e outra do metrô.
Escrever é orar e pedir perdão
Nascido em 1959, Jon Fosse começou a escrever aos 12 anos, segundo ele, motivado por um acidente quase fatal aos sete. “Essa experiência é a mais importante da minha infância. E tem sido muito formativa para mim como pessoa, tanto no bom sentido quanto no mau. Acho que isso me criou como uma espécie de artista”, declarou em entrevista à revista The New Yorker, em 2022.
Desde então, trabalha de forma bastante prolífica e escreveu 33 livros em prosa, 34 peças, 13 coletâneas de poesia e três ensaios. Sua primeira obra foi publicada em 1983, aos 24 anos, com o título Raudt, svart, que pode ser traduzido como Vermelho, preto.
Em entrevista recente, publicada pelo veículo Christian Network Europe, Fosse revelou que seu foco na escrita é tão grande que enxerga o ato como uma forma de meditação. “Acredito que escrever é, em si, uma forma de pedir perdão. E, provavelmente, é oração também”, afirmou. “Quando você ora, não é a pessoa satisfeita que há em você quem ora. Muitas vezes, penso que quanto pior a situação de uma pessoa, mais próxima ela está, em certo sentido, de Deus.”
Fosse foi criado em um lar luterano e, durante a adolescência, dizia-se ateu. Porém, entre 2012 e 2013, o norueguês se converteu ao catolicismo quando, voluntariamente, entrou na reabilitação por conta de seu alcoolismo. “Se você se converte à Igreja Católica, naturalmente se considera cristão, o que significa que Cristo ocupa um lugar central na forma como você entende a vida e o mundo. Ainda não significa que você sabe alguma coisa, mas que você escolhe acreditar”, ponderou.
O livro que costuma ser indicado como sua obra-prima é Septologien, publicado originalmente em 2022. No ano que vem, o calhamaço de quase mil páginas será lançado em português como Septologia, pela batuta da editora Fósforo, que já publicou Brancura e A Casa dos Barcos. O romance ainda inédito no Brasil acompanha outro personagem chamado Asle, um velho pintor e viúvo que pensa constantemente sobre seu passado, ponderando a respeito da juventude e sua conversão tardia ao catolicismo.
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