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Cena do filme Meu Nome é Dolemite, de Craig Brewer, com Eddie Murphy
Cena do filme Meu Nome é Dolemite, de Craig Brewer, com Eddie Murphy| Foto: François Duhamel/NETFLIX

Todo ano é a mesma coisa. A mídia e a mente coletiva do grande público não conseguem dividir a atenção em relação a tudo o que está acontecendo ao mesmo tempo. Vale para política, vale para economia e, claro, vale para a cultura. Com o cinema, portanto, não teria como ser diferente. O que impressiona neste 2019 é o escopo, considerando a quantidade de produções interessantes que chegaram às salas, especialmente diante do megalançamento de Vingadores: Ultimato, que mais ou menos encerrou a saga dos heróis da Marvel iniciada em 2008 com o primeiro Homem de Ferro.

Nenhum articulista de audiovisual com um mínimo de bom senso irá reclamar do fato de as pessoas estarem indo em massa ver filmes. Convencer o público a sair de casa para ir ao cinema é louvável e os filmes da Marvel, ao promover espetáculos cinéticos e pirotécnicos (com, vá lá, uma boa pitada de emoção), conquistaram este feito como nunca antes – e a quebra do recorde na bilheteria é prova disso. Todavia, ao menos no Brasil, isso foi alcançado com uma certa perda.

O limite de salas exibindo um mesmo filme foi cancelado, permitindo que boa parte das telas brasileiras exibissem apenas Vingadores: Ultimato. No passado, por causa da limitação imposta pelo governo, pessoas que não conseguissem ingressos para ver o blockbuster da semana acabavam indo ver outro filme, para “não perder a viagem”. Isso levantava a bilheteria de outras produções, tornando o debate cultural mais rico e fértil. Se há apenas um filme a ser visto, corremos o risco de abraçar a monocultura, em que todo um país (talvez um mundo) só consuma um único título semanas a fio.

Claro, o ano de 2019 não inventou a concentração de atenção. No ano passado filmes como As Viúvas, de Steve McQueen, ou Fé Corrompida, de Paul Schrader, foram criminosamente pouco vistos – particularmente fora dos círculos cinéfilos. A questão é que ter um Vingadores ocupando as salas, ou mesmo, no sentido oposto, Nós, de Jordan Peele, Era Uma Vez em... Hollywood, de Quentin Tarantino, ou O Irlandês, de Martin Scorsese, ocupando o debate pelos seus óbvios méritos estéticos, além das provocações sócio-político existenciais, fizeram com que grandes e importantes produções tenham sido obscurecidas.

É por isso que separamos alguns títulos que você precisa ver (se já não viu) para ter um ano verdadeiramente cinematográfico.

Border, de Ali Abbasi

Nascido e criado no Irã, o diretor Ali Abbasi completou seus estudos em cinema na Dinamarca. É o olhar do estrangeiro, aquele que não é percebido como um igual por seus pares, que ele imprime em Border, seu segundo longa. A protagonista do filme, Tina, vivida por Eva Melander, possui feições grotescas que a tornam uma pária na sociedade dinamarquesa – exceto, claro, quando ela é necessária enquanto mão de obra não-escolarizada. Ela trabalha como oficial no setor de imigração de um aeroporto, o que aponta para a ideia artificial de fronteira que o título em inglês evoca.

Tina possui um aguçado olfato, o que a permite sentir inclusive o medo dos eventuais passageiros que podem ter algum tipo de contrabando escondido na mala. A mesma sociedade que não a reconhece como uma igual se beneficia de suas habilidades, portanto. A trama começa a se desenvolver quando ela conhece Vore, papel de Eero Milonoff, que possui características semelhantes às suas, o que a leva a refletir sobre sua existência no mundo. O resultado é um filme tão exótico quanto sua protagonista.

Se a Rua Beale Falasse, de Barry Jenkins

Depois de Moonlight, o grande azarão do Oscar de 2017, era de se esperar que o filme seguinte de Barry Jenkins atraísse o público quase organicamente. Não foi o que aconteceu com Se a Rua Beale Falasse. Sua única indicação e vitória à premiação – absolutamente merecida, diga-se – foi para Regina King como a matriarca da família Rivers, que está no centro deste drama doméstico. Nem o histórico do diretor e nem a atuação premiada foram suficientes para atrair o público.

O filme adapta o livro de mesmo nome de James Baldwin, um ensaísta americano conhecido por suas reflexões sobre raça, gênero e cultura nos EUA do pós-Guerra. A trama acompanha Tish Rivers, papel de Kiki Layne, que está grávida de seu amor de infância, Alonzo Hunt, vivido por Stephan James. Ele, porém, foi acusado de um crime que não cometeu. A mãe de Tish, interpretada por King, é quem irá mover o mundo para tentar provar a inocência do genro.

O que impressiona, e esse é todo o mote do filme, ambientado na década de 70, é a atualidade do tema. O jovem negro que só quer levar uma vida pacata encontra obstáculos o tempo todo impostos por uma sociedade que é, na visão do escritor e do cineasta, inerentemente racista.

Rolling Thunder Revue: A Bob Dylan Story, de Martin Scorsese

Enquanto o mundo celebra – com toda razão, veja bem – os méritos de O Irlandês, fruto da parceria entre a Netflix e Martin Scorsese, o, digamos, lado b de sua filmografia, foi igualmente contemplado. Além de ser um dos mais importantes diretores de cinema de ficção do mundo, o autor de Touro Indomável e Os Bons Companheiros é, também, um dos grandes documentaristas de música vivo.

Desde a edição do documentário sobre Woodstock, que abriu sua carreira, até George Harrison: Living in the Material World, passando por A Última Valsa, sobre o show derradeiro da lendária The Band, Martin Scorsese dirigiu grandes filmes sobre a história da música contemporânea. Mesmo Bob Dylan, o objeto de Rolling Thunder Revue, já teve sua vida e obra escrutinada pelo diretor em No Direction Home.

Rolling Thunder Revue: A Bob Dylan Story by Martin Scorsese é, ao mesmo tempo, mais e menos ambicioso. Faz um pequeno recorte da carreira de Dylan, ao focar na lendária turnê batizada (sem nenhum significado aparente) de Rolling Thunder Revue. Alternando entrevistas com o próprio músico e outras figuras com imagens feitas da época, Scorsese consegue nos transportar para essa grande festa onírica que foi o período. O que dizer de um show que tinha o poeta Allen Ginsberg como número de abertura, Patti Smith e Joan Baez como acompanhantes e uma jovem Sharon Stone como hostess?

Ad Astra: Rumo às Estrelas, de James Gray

Pelo jeito existe um limite para a quantidade de Brad Pitt que o público consegue lidar. Era Uma Vez... em Hollywood esgotou a cota e Ad Astra foi eclipsado. A pena é que o épico espacial de James Gray, que de alguma forma condensa Apocalipse Now, de Francis Ford Coppola, e 2001: Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick, com uma pitada de Édipo, é uma das grandes obras de 2019.

Pitt interpreta Roy McBride, um astronauta que recebe a missão de ir atrás de seu pai, vivido por Tommy Lee Jones, que se perdeu 30 anos antes, quando se aventurou nos confins do Sistema Solar em busca de indícios de vida alienígena fora da Terra. O resultado é uma reflexão existencial sobre a natureza humana, capaz de se deslumbrar com os fenômenos ocultos, mas sempre com dificuldade de enxergar a maravilha da criação no outro.

Este é um tema caro ao diretor, já abordado em seu trabalho anterior, o igualmente subestimado Z: A Cidade Perdida, de 2016.

Meu Nome é Dolemite, de Craig Brewer

Desde 2013 Eddie Murphy estrelou apenas um filme, o esquecível drama Mr. Church, de 2016. Os rumores sobre aposentadoria, porém, foram apressados. Neste filme o ator interpreta o lendário Rudy Ray Moore, comediante que revolucionou a comédia ao entender que há um componente inerentemente cultural no humor e incluir versões melhoradas das histórias que os moradores de rua negros contavam para se entreter na década de 70.

Nascia aí, nos palcos, Dolemite, espécie de persona criada por Moore que incorporava uma série de estereótipos da época. Dos palcos de stand-up o personagem chegou às telas com Dolemite, o filme de 1975, que se tornou uma espécie de fenômeno tardio da Blaxpoitation, o cinema de ação feito e estrelado por negros voltado para o público negro americano. Meu Nome é Dolemite narra toda a trajetória desta figura maior que a vida.

Se a história não te interessa, vale ver pelo elenco. Além de Murphy, brilhante em todas as cenas em que aparece, Meu Nome é Dolemite tem também um Wesley Snipes em estado de graça na pele de D'Urville Martin, um dos grandes atores da Blaxpoitation que é convencido por Moore a dirigir e viver o vilão em Dolemite.

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