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Em novo romance distópico, Ignácio de Loyola Brandão imagina um futuro tão desastroso quanto familiar para os brasileiros.
Em novo romance distópico, Ignácio de Loyola Brandão imagina um futuro tão desastroso quanto familiar para os brasileiros.| Foto: Divulgação

A nação radicalizada está dividida em dois grupos imprecisos conhecidos por “Nós” e “Eles”. A crise permanente fez do impeachment dos presidentes coisa corriqueira, dando chance aos mais de mil partidos existentes se revezarem no poder em prazos determinados. No primeiro dos 47 dias definidos de mandato, o presidente é logo processado por um tribunal. Os políticos vão encolhendo quando aceitam propinas, e a maioria têm cerca de um metro de altura, sendo chamados agora de Astutos. Porque a palavra “política” está proibida de ser dita e pensada, abolida pela nova Constituição de 111 mil páginas.

Desde que Brasília afundou por causa do peso das malas de dinheiro, o país teve outras capitais, em distantes rincões do território, além de tentativa malograda de transferir a capital para Miami. A aplicação da justiça em última instância depende do exame do Ultrassuperior Tribunal, ou Areópago Supremo, cujos membros vitalícios nunca aparecem em público, nem sequer em fotos. Ao contrário do areópago da Antiga Grécia, a céu aberto, este funciona em um prédio blindado de granito negro, sem portas ou janelas visíveis. Como a interpretação constitucional não se conclui, graças ao tamanho da magna carta, o Brasil é enxergado pelo mundo como terra de eternos descontentes.

Construções faraônicas como a Arena do Impedimento — onde vigora o foro privilegiado — e a distribuição de propinas bilionárias contrastam com a legião de 70 milhões de desempregados, muitos deles moradores de uma das 20 mil favelas com mais de 100 mil habitantes cada. O governo não se ocupa mais da educação, da cultura, da saúde, do meio ambiente. Cadáveres são atirados nas ruas e saqueados. Trens percorrem as cidades levando corpos de pessoas mortas por epidemias, balas perdidas e assassinatos. Para os idosos e os que não querem aguardar a hora final em sofrimento, resta a opção das filas de autoeutanásia, ritual de suicídio coletivo cumprido com resignação mística.

O esboço de uma vida insuportável, onde o humor e a zombaria parecem ter sido tragados por um buraco negro: é o que se lê na nova obra de Ignácio de Loyola Brandão. Podemos chamar de distopia esse deslocamento da realidade conhecida para o longínquo amanhã onde as consequências e desdobramentos de hoje acham lugar certo, em idealização inversa às formulações otimistas da tradicional utopia. O distópico Desta terra nada vai sobrar, a não ser o vento que sopra sobre ela, no entanto, muito além de visão pessimista, é carregado de ironia, ao demarcar em traços fantásticos a cena política contemporânea. Com referências a então “extinta” operação Lava Jato, o autor de Zero (1975) e Não verás país nenhum (1981) fecha uma não planejada trilogia passando ao leitor a impressão de que, sim, a literatura consegue retratar o nonsense de nossa inquietante conjuntura e seus repetitivos atores.

Em tal futuro fictício tão próximo de nós, a corrupção é uma epidemia que mata, dissolvendo os indivíduos em gosmas, após o contato com qualquer corrupto. Trens especiais conduzem os mortos infectados pela Corruptela Pestífera, incurável doença de efeitos terríveis — explodindo barrigas, desprendendo os dentes, derretendo cérebros e fazendo os olhos saltarem. Apesar da enfermidade, os Astutos resistem, continuam governando nas sombras. E a sociedade, acostumada à cultura histórica de jeitinhos e falcatruas, não estranha o uso massificado de tornozeleiras eletrônicas pela população desde o nascimento. Todos são culpados, delatáveis e delatores, amedrontados, irados, desencantados, exaustos, “todo mundo fora de si, todo mundo contra todo mundo”.

A cacofonia dominante se completa com a informação ubíqua sobre os cidadãos, em câmeras onipresentes, chips que gravam o pensamento, drones vigilantes acima das cabeças. Ao passo em que fofocas, mentiras, fake news são consumidas vorazmente nas redes de desinformação. A opressão do tipo Big Brother recorda outra distopia — 1984, de George Orwell, publicada em 1949 para criticar o totalitarismo. A ficção de Ignácio de Loyola Brandão extrai da política uma espécie de juízo dos costumes, que infelizmente não se restringem aos astutos que por aqui transitam desde a chegada de Pedro Álvares Cabral.

Busca a esmo do futuro perdido

A certeza do desnorteio em uma atmosfera de tontura permeia a narrativa, acompanhando a trajetória de Clara e Felipe, um casal que se desfaz. No percurso que trilham em paralelo, a busca de sentido de cada um para a relação, para a própria vida e o país que não apresenta mais prumo algum, é uma busca a esmo, desorientada, em corrida do desespero. O pesadelo do qual não se desperta é a realidade indigesta, indesejada, sem escape. O sonho que se sonha em vigília, no limite do delírio, é acordar um dia fora dela, de volta aos braços do ser amado, e ao “país do futuro” de grandiosos planos e esperanças. Sair da posição inercial irredutível, na qual continuar apenas agrava a situação. Restabelecer o vislumbre dos primeiros dias de descoberta, em que o outro se confundia com a natureza inexplorada de horizonte sem fim.

A inércia que arrasta os protagonistas na aventura distópica se combina com o modo coletivo da eterna espera pelo que nunca vai acontecer. “O que querem os brasileiros?”, poderia perguntar o criador do universo depois de retirar do escuro o caos primordial. No futuro inominado em Desta terra nada vai sobrar, a não ser o vento que sopra sobre ela, parecem querer aguardar o que jamais vem, ou apenas curtir e compartilhar verdades forjadas para destruir reputações, nesse meio tempo. Ou ainda, contratar um hacker para violar o pensamento de alguém, através da invasão dos thinking chips. A leitura do romance talvez provoque a suspeita de que, em sua brasilidade, Deus resolveu não se desfazer por inteiro do caos primordial, guardando um bom pedaço caótico para uso do livre-arbítrio no Brasil.

Um lugar em que sobram espectadores horrorizados, no vácuo da atitude e do questionamento. Em que a intolerância avança sobre a diferença, o desconhecido, a arte, o silêncio ou o sucesso dos outros. A suposição é o senso comum, a ignorância geral é fato consumado. Um lugar onde se permanece querendo fugir, o lar para o qual não dá para voltar. “Estou perdida. E quando estamos perdidos, voltamos para lugar nenhum”, diz Clara. “Nas trevas havia Deus. O que ele fazia no escuro, antes de criar o mundo?”, pergunta-se com insistência Felipe, atrás de significado para o caos.

Imersos no país do tempo perdido, quando não se sabe nem o ano em que se vive, os dois personagens centrais da trama se desencontram na evolução da incompreensão mútua. Clara quer a estabilidade que não reconhece na relação. Felipe, que tudo fique como está. Expectativas se chocam. Insatisfações afloram. A separação detona uma versão romântica do elo desfeito entre “nós” e “eles”, a incapacidade da convivência se alastra para a impaciência perante o outro. Indivíduos à deriva não se contentam com as promessas refeitas do cotidiano. Algo se dilui no despropósito descortinado em todas as direções, sem seta para frente. Como a ligação do povo com políticos que não se cansam de anunciar a salvação da pátria, em futuros que se aproximam nas campanhas, e se distanciam depois da posse.

Mergulho no presente nacional, o livro se expande ao passado remoto idealizado, lançando o leitor ao tempo que sempre se remonta, tão pleno de possibilidades quanto limitado por desvios, demoras e pedras no caminho.

© 2019 Rascunho. Publicado com permissão.

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