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Além de “Contágio” e de fimes que tratam especificamente de epidemias, clássicos como “Dr. Fantástico”, de Kubrick, nos fazem refletir.
Além de “Contágio” e de fimes que tratam especificamente de epidemias, clássicos como “Dr. Fantástico”, de Kubrick, nos fazem refletir.| Foto: Divulgação

Algumas semanas atrás escrevi para a Gazeta do Povo um texto sobre como Contágio, brilhante filme de Steven Soderbergh, antecipou com uma precisão assustadora o cenário político social e econômico gerado pela pandemia da Covid 19, o novo coronavírus. Difícil pensar em uma obra que seja mais relevante nestes tempos, mas a verdade é que esta não foi a primeira nem será a última vez em que o cinema oferece algumas pistas sobre como navegar por este estranho novo mundo.

O cinema, afinal, como nos lembra o grande crítico americano Roger Ebert – falecido neste 4 de abril, em 2013 – é uma máquina de produzir empatia. Seja pela recriação do relato histórico, seja através da mais delirante fantasia, filmes são um aviso constante de que não estamos sozinhos e que isto, como todas as coisas, também irá passar.

Dr. Fantástico (1964), de Stanley Kubrick

A mãe das sátiras políticas, Dr. Fantástico acompanha os eventos após o paranoico anticomunista general Jack D. Ripper, vivido pelo sempre impressionante Sterling Hayden, ter se aproveitado de uma brecha na burocracia da cadeia de comando e lançar um ataque nuclear massivo em direção a União Soviética. Este é, afinal, o auge da Guerra Fria, que se estenderia até os anos 1980. A trama se concentra em três focos. A resistência de Ripper que se mantém aquartelado em isolamento; a Sala de Guerra, em que o presidente americano, seus generais e conselheiros debatem o que fazer; e a preparação para o ataque de dentro de um dos aviões que transportam as ogivas nucleares.

Uma guerra nuclear não é uma pandemia, evidentemente. A forma como os governantes reagem diante de uma situação incontrolável e de potencial catastrófico, porém, não é tão diferente, o que permite os paralelos. Especialmente quando se tem alguém como Kubrick por trás das câmeras, permitindo que momentos brilhantes ganhem vida. Como a icônica frase “cavalheiros, vocês não podem brigar aqui! Essa é a sala de guerra!”, dita pelo presidente Merkin Muffley, um dos três personagens vividos por Peter Sellers no filme. A elite política parece destinada a ser patética.

Outro deles é o Dr. Fantástico do título. Ele é um cientista nazista que trabalha como consultor para o governo americano. Sellers cria uma bizarra caricatura, um homem entrevado e delirante, incapaz de controlar sua mão direita, que insiste em fazer a saudação nazista enquanto revela seu plano para o presidente – que chama de “fuhrer” mais de uma vez. O plano, diante do apocalipse, é o de sempre: selecionar os “melhores” e “mais puros” (eles próprios inclusos, claro) e abandonar o resto da humanidade. O nazifascismo e seu desejo de morte viabilizado pela mais liberal das sociedades.

Disponível para assinantes do HBO Go e para aluguel ou compra no Google Play, iTunes Store, Claro Vídeo e Looke.

O Sétimo Selo (1957), de Ingmar Bergman

Um cruzado volta depois de uma fracassada campanha de 10 anos para encontrar uma Europa devastada pela peste negra. Ainda na praia lhe espera a Morte Encarnada, papel de Bengt Ekerot, para lhe levar. O cruzado faz então uma aposta: caso vença uma partida de xadrez com a Morte poderá seguir vivendo. Ele só está, claro, ganhando tempo. Antes de morrer ele parte em uma busca existencial enquanto ruma para casa e se encontra com figuras quase tão trágicas quanto ele próprio. A morte – e esse é a grande lição de O Sétimo Selo – sempre vence, mais cedo ou mais tarde.

Vale ver ou rever O Sétimo Selo neste momento em primeiro lugar para celebrar a memória do grande Max Von Sydow, que nos deixou no começo de março e que aqui vive Antonius Block, o cruzado em questão. Mas também pela forma como Bergman trata a morte enquanto tema, posto que a praga assola as vidas dessas pessoas. Nunca chegamos a saber, por exemplo, a causa da morte de Block. Um ferimento mortal de guerra? Um naufrágio? Ou a própria peste negra? Pouco importa.

Em O Sétimo Selo a morte é tão presente que o véu entre o plano mundano e o etéreo se tornou mais translúcido, permitindo que o ator, interpretado por Nils Poppe, visse a Virgem ou a própria Morte encarnada. Vemos uma cultura obcecada com a morte. Superstições e o obscurantismo ganham força. Mesmo a arte, celebração da vida por excelência, é interrompida por uma procissão que celebra a morte. Ainda que, no final, seja ela, a arte, o que sobrevive. É o fio de esperança que Bergman permite ao espectador.

Disponível para assinantes do TeleCine Play.

Ensaio Sobre a Cegueira (2008), de Fernando Meirelles

Adaptar a obra de José Saramago não é tarefa fácil. Muito da sutileza e nuance da proza do Nobel português se perdem na tradução para as imagens – que trabalham com outra ordem de nuance e sutileza. Ainda assim, o trabalho de Meirelles em traduzir para o cinema o livro de mesmo nome traz uma série de acertos, além de lições para o momento. O primeiro é no visual, ao criar uma cidade sem identidade, cinza, sem vida, o que é reforçado pela luz estourada. A cegueira que acomete a população, com exceção da personagem de Julianne Moore, os atinge de forma prática, mas a realidade é que já não havia nada para ser visto.

A cegueira é uma praga que revela o pior das pessoas. Ninguém enxerga e, ao considerar que os outros também não enxergam, se libertam das amarras sociais que os prendiam, se permitindo todo o tipo de barbárie e selvageria. Meirelles nos coloca junto da personagem de Moore (nenhum deles tem nome), que tudo vê, mas nada pode fazer quanto a isso. Ela, e nós espectadores a reboque, testemunhamos o quão cruel pode ser a experiência humana sem as amarras sociais. Um lembrete do pior que conseguimos chegar.

Ensaio Sobre a Cegueira não está disponível para streaming no momento. O DVD pode ser adquirido usado em sebos virtuais.

O Hospedeiro (2006), de Bong Joon-ho

Na moda depois de se tornar o queridinho de Hollywood com seu belo Parasita, o sul-coreano Bong Joon-ho entrou no mapa da cinefilia com este O Hospedeiro. O filme acompanha uma família que vê a jovem Hyun-seo, papel de Ko Asung, ser sequestrada por um monstro mutante. Logo se desenvolve um pânico em relação a um vírus que teria se espalhado pelas pessoas que tiveram contato com a criatura. No meio da quarentena a família descobre que a adolescente ainda está viva, mas as autoridades não apenas não se importam, como os impedem de empreender a busca.

Quem acompanha o noticiário sabe que a Coreia do Sul deu a mais eficiente resposta para a pandemia até agora. Isso porque muitos dos protocolos envolvendo testes e controle social são bem estabelecidos. Há uma persistente paranoia populacional envolvendo a doença que, para todos os fins, é bastante eficiente. Joon-ho, aqui, apresenta o outro lado disso. Mostra como a suspeita de uma epidemia pode ser usada pelo estado para fazer controle social, passando por cima das famílias e dos afetos. O monstro, ao final, é mais fácil de ser derrotado do que as instituições de controle.

Uma ressalva: em 2006 o visual do monstro passava. Hoje, porém, as técnicas de computação gráfica melhoraram e nos acostumamos a ver coisas melhores. Ele funciona mais enquanto conceito do que visto na tela. Por sorte Joon-ho está mais interessado no drama familiar do que na destruição causada pela criatura e são poucas as cenas.

Disponível para assinantes da Netflix.

Olmo e a Gaivota (2015), de Petra Costa e Lea Glob

Agora que foi indicada ao Oscar de Melhor Documentário, pelo seu Democracia em Vertigem, Petra Costa ficou mais conhecida do grande público brasileiro. Antes, porém, ela fez este Olmo e a Gaivota, um filme que de cara já desafia as convenções de gênero. Ele se situa em uma tensão entre o que é documentário e o que é ficção. Há uma atriz, Olivia Corsini, que está esperando seu primeiro filho. A gravidez é de risco, então ela fica isolada em seu apartamento em Paris, sem poder ensaiar nem viajar com a trupe de teatro para os EUA.

Costa e Glob usam essa tensão entre documentário e ficção como forma de nos aproximar do que Corsini experimenta enquanto está isolada sozinha no apartamento enquanto seu companheiro – tanto na vida quanto de trabalho no teatro –, Serge Nicolai, segue com os ensaios. O confinamento voluntário da atriz é uma perfeita alegoria para os momentos que o mundo vive agora. Ela se sacrifica para proteger o outro, alguém que não pode se proteger sozinho.

Disponível para assinantes da Netflix e para aluguel ou compra no Google Play, iTunes Store e Looke.

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