• Carregando...
Na novela “Esquina da minha rua”, o escritor Carlos Machado discute as angústias do imigrante, como a perda da pátria e a adoção de uma nova cultura.
Na novela “Esquina da minha rua”, o escritor Carlos Machado discute as angústias do imigrante, como a perda da pátria e a adoção de uma nova cultura.| Foto: Pixabay

Na história da literatura são muitos os exemplos de que, aos verdadeiros poetas, não é possível a pátria. Todos eles vivem ou viveram num constante exílio. Daí a peregrinação de Camões, o pluralismo poético de Fernando Pessoa e o gauche drummondiano. Gonçalves Dias, ao elaborar sua famosa Canção do exílio, também não era estranho a exílios vividos fora e dentro de sua própria terra, sempre estrangeira quando se referia a sonhos, a angústias e a sentimentos à flor da pele. Apesar das palmeiras e dos cantos do sabiá, é certo que, ao retornar à pátria, percebeu a continuação do que sempre fora: um eterno exilado. Atesta o primado de sua obra maior, a indianista, onde o herói nacional viveria numa nação às avessas, seria possível nomeá-lo o autóctone expatriado.

No campo da teoria, entre os filósofos contemporâneos, cabe a Deleuze o privilégio de tentar demarcar a geografia do poeta, o qual viveria em constantes zonas de interferência, sempre ultrapassando as bordas limítrofes de sua língua e cultura. Talvez, seu exemplo mais notório tenha sido Paul Celan.

O curitibano Carlos Machado, na pequena novela Esquina da minha rua, discute as angústias do imigrante. Como exemplos há a perda da pátria, a adoção de uma nova terra, a absorção da língua e cultura desta mesma terra e o abandono do passado contido na proibição dos pais de ensinarem aos filhos a língua de onde se vem. “Minha filha, nosso idioma agora é o brasileiro”. Numa narrativa em que se enumeram as raízes estrangeiras, suas personagens rompem bordas e acabam revelando que a esquina de minha rua não é um local tão plácido, mas um interfluxo de tráfego de culturas sempre estrangeiras.

O livro lança luz, principalmente, sobre duas personagens. O primeiro é Pedro, um músico de origem italiana que vive entre Curitiba e algumas cidades da Suíça. A outra é uma mulher de ascendência alemã, cuja atuação na narrativa é lhe enviar constantes mensagens, descrevendo sua vida cotidiana permeada de alegrias e, muitas vezes, de tristeza e melancolia. As duas vozes se contrapõem, mas jamais se cruzam num verdadeiro diálogo. Pedro descreve sua Curitiba natal, os passeios pelo centro, ele a observar a cidade em sentido inverso através das poças da praça Osório, sua vida de músico e, sobretudo, a falar da lembrança do pai, também músico, mas frustrado, morto por uma cirrose quando o filho tinha sete anos de idade.

O interessante neste pequeno livro não é propriamente saber o relacionamento entre Pedro e a mulher das mensagens. Com a distância de uma ou mesmo duas gerações à frente, ela diz que o conheceu quando trabalharam juntos na mesma escola. Ele, professor; ela, secretária. Pelo que o texto revela, a mulher continuou, mas ele partiu ao viajar entre dois continentes para a aventura da música. Os dois mantêm estreitas relações de amizade, conforme as palavras dela. Mas ele, Pedro, na parte da narrativa que lhe cabe, jamais fala sobre isso.

Nomadismo cultural

Outro aspecto do livro, além dos mencionados exílios, é o nomadismo cultural. Pedro mistura presente e passado ao viajar urbis et orbis, pelo Brasil e pela Suíça, percorrendo de trem uma linha sinuosa em que as cidades se misturam. Ele já não sabe onde uma termina e onde começa a próxima, que lhe surge de repente em meio à saída de túneis e às brumas que cobrem a paisagem. Mais uma vez as bordas estendendo-se, intercruzando-se, numa mistura de idiomas.

Entretanto, na confluência de várias trajetórias, permeadas de silêncios e subentendidos, a figura do pai vai e volta, surge, desaparece e retorna: “sou a continuação de meu pai. A cirrose que o matou”. Pedro diz que tem pouco mais de 38 anos, que aos 40 vai parar de compor. Acaba por desejar impor a si o limite que não houve ao pai. Relata os dissabores de viajar de cidade a cidade tentando divulgar seu trabalho, fazendo pequenos shows; conta também sobre suas dificuldades nos estúdios de gravação.

A vida da outra personagem aparentemente é estática, como alguém que tivesse se enraizado. Dura pouco, porém, a impressão, logo ela está a divagar e a tentar seguir o percurso do amigo, a adivinhar-lhe cidades, nome de composições, versos, poemas. Deseja-lhe sempre sucesso e não perde tempo ao lhe pedir que mostre novas obras. Ela atua como alguém que aglutina em torno si personagens cujas trajetórias são de pessoas comuns, gente que trabalhou a vida inteira, no sacrifício, para ganhar uma mísera aposentadoria e precisar ainda trabalhar mais, como o seu próprio primo, que fratura o fêmur e necessita de ajuda, um quartinho de fundos com alguém que lhe possa aplicar uma injeção vez ou outra. Personagens pobres, da periferia de toda cidade grande, são presenças constantes, muitas vezes sensíveis, prontas a ajudar a alguém que se sente mal na rua.

A opção do autor em seguir um personagem pelo caminho da música é oportuna. Talvez este esteja mais próximo do público do que o poeta e, ao mesmo tempo, consiga reaproximar letra de música e poesia, duas vertentes que têm, na maioria das vezes, reiniciado calorosos debates estéticos. Pontos de vista favoráveis ao convívio desses dois artesanatos poéticos não são pacíficos nem matérias fáceis de se chegar a conclusões.

No final, confluem-se exílios e nomadismo. O exílio em se sentir estrangeiro na sua própria terra; o nomadismo não na busca de outra pátria, mas na tentativa de fugir de demarcações que transfigurariam a falsa direção ideológica do gênero épico. A repetida afirmação de Pedro “sou a continuação de meu pai”, reverte-se no paradoxo que ele enuncia: “sou a cirrose que o matou”. Estaria pronto para partir sozinho, e tentar o recomeço.

A literatura sempre foi um modo de desfazer o viés ideológico e estético das narrativas cristalizadas pela tradição e hegemonizadas pelo poder, mesmo quando sua atitude foi a organização ou, quem sabe, a desorganização da linguagem. Há períodos históricos em que nos basta uma narrativa atípica; outros há em que é preciso avançar no abismo das bordas, provocar o precipício, desafiar o impossível. Subversão e estranhamento que só a língua permite.

© 2019 Rascunho. Publicado com permissão.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]