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“Watchmen” aposta na criação de uma sociedade na qual as pessoas têm superpoderes para questionar a realidade.
“Watchmen” aposta na criação de uma sociedade na qual as pessoas têm superpoderes para questionar a realidade.| Foto: Divulgação

Até o dia primeiro de julho de 1921 a cidade de Tulsa, no estado americano de Oklahoma, era conhecida como a Wall Street Negra dado o grande número de negócios e empreendimentos criados por e para as comunidades negras. Neste dia, porém, uma multidão de moradores brancos atacou violentamente as famílias negras em suas casas, resultando na morte de 36 pessoas. O evento real da história dos EUA é o ponto de partida usado por Damon Lindelof para "Watchmen", a série que está sendo exibida agora pela HBO nas noites de domingo – mesmo horário de "Game of Thrones". Não é coincidência.

A rigor, não existe mídia que seja voltada exclusivamente para determinados públicos ou que possa abordar apenas certos temas. Foi o que Alan Moore e Dave Gibbons mostraram quando os quadrinhos de "Watchmen" foram lançados nos anos 1980. Os super-heróis habitavam o mundo real e afetaram a história. Nixon nunca chegou a renunciar e os EUA ganharam a Guerra do Vietnam graças a presença do Dr. Manhattan, um ser superpoderoso. Na superfície, estão lá os malucos de fantasia que saem de noite para esmurrar bandidos. Uma análise minimamente mais profunda apresenta uma complexa obra de literatura contemporânea, questionando inclusive a própria estrutura dramática dos quadrinhos.

Lindelof não está interessado em apenas adaptar "Watchmen", o que, inclusive, já foi feito com resultado questionável por Zack Snyder no filme de mesmo nome. A série é uma continuação do material original, imaginando um Estados Unidos onde o Vietnam foi anexado como estado e o país segue entre o trauma e o luto depois da tragédia retratada nas últimas páginas dos quadrinhos. Tulsa é um laboratório para uma iniciativa inusitada: mascarar a força policial para proteger suas famílias e identidades. A grande ameaça da cidade é a Sétima Kavalaria, um grupo supremacista branco que se inspira no Rorschach, um vigilante de eras anteriores, de inclinações anarquistas e personalidade paranoica. É a fantasia questionando a realidade em que vivemos.

Outras empreitadas

A HBO não está sozinha na tentativa de capitalizar em cima dos sucessos de bilheteria dos filmes baseados em quadrinhos. O Prime Video, da Amazon, lançou este ano "The Boys", inspirada na obra de Garth Ennis. Tanto a adaptação quanto o original se dão pelo ponto de vista das pessoas normais que vivem em um mundo povoado por super seres. Seus poderes sobre-humanos os tornaram arrogantes e desconectados da realidade. Essa alienação permite que eles sejam usados como fachada de grandes corporações, nem sempre com ideais elevados. A sensação de abandono gerada pela desigualdade é traduzida em metáfora pelo roteiro.

A Netflix, quando ainda detinha o contrato em parceria com a Disney/Marvel, chegou a ensaiar algo nesse sentido. A primeira temporada de "Demolidor" questionava a ação predatória das classes abastadas sobre bairros pobres. Jessica Jones discutia o isolamento e a sensação de vigilância de uma cultura machista sobre os corpos femininos. Luke Cage ensaiou uma discussão racial que nunca se concretizou. Agora que as propriedades da Marvel se integrarão ao catálogo do Disney+, a Netflix garantiu os direitos de adaptação da obra de Mark Miller, responsável por quadrinhos violentos e mais ou menos contestadores como "Kick Ass" e "O Procurado".

Ainda é cedo, porém, para cravar que tipo de série ou filme irá sair daí. Enquanto isso, a HBO segue exibindo "Watchmen" em seu horário mais nobre. Quando da publicação deste texto ainda faltarão quatro episódios para encerrar a primeira temporada. No último domingo, Lindelof finalmente começou a apresentar algumas possibilidades de solução para sua caixa de mistérios – ele, afinal, é um dos criadores de "Lost" e o responsável central por "The Leftovers", séries que dependem muito do quanto não sabemos sobre a história.

Ao mesmo tempo em que descobrimos um pouco mais sobre o passado dos personagens, a questão racial aos poucos se torna intimamente ligada a interesses políticos e corporativos. Nada muito diferente do mundo em que vivemos.

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