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Uma obra literária precisa ter um problema, um nó que surge durante a narrativa e precisa ser desfeito. Carrara o desfaz com perfeição.
Uma obra literária precisa ter um problema, um nó que surge durante a narrativa e precisa ser desfeito. Carrara o desfaz com perfeição.| Foto: Divulgação

Se Deus me chamar não vou é narrado por uma menina de 11 anos cujos pais são donos de uma pequena loja que vende artigos para idosos. De início, nada surpreendente. Pouco a pouco, no entanto, vão surgindo temas que com frequência afligem a alma humana.

Já no primeiro capítulo, numa espécie de prólogo, Maria Carmem escreve uma carta ao Homem-Aranha, assunto escolhido a pedido da professora de redação da sua classe. No decorrer do texto, a autora, através da voz da menina, toca em temas como a solidão, o sofrimento, a imortalidade e a falta de escolha em relação ao destino. “Eu preferia fazer carta ao Super-Homem, porque ele é imortal”; “Acho que se um bicho fosse me morder pra eu virar super-heroína eu nunca ia escolher aranha. Aranha tem muitas pernas e é sozinha demais lá em cima na teia tanto tempo esperando alguém aparecer”; “Uma vez numa viagem eu vi uma aranha comendo um vaga-lume que não parava de piscar. [...] Será que o vaga-lume pisca de dor?” A narrativa vai avançando de acordo com as observações de alguém aparentemente inocente, mas que repara a vida de um lugar de estranhamento — uma espécie de gauche drummondiano.

Maria Carmem, considera-se, tem muito corpo para sua idade, está um pouco gorda e não se encaixa no padrão de comportamento de seus companheiros. Ela descreve a loja dos pais, os objetos à venda — mesmo os que estão em falta —, a vida no colégio, as brincadeiras de mau gosto dos colegas, seu amor por um deles, a falta de correspondência sentimental e o passar do tempo que, para ela, é lento, muito lento:

Todos na loja e no prédio comentam que o tempo passa muito rápido, quando vai ver, já passou. Eu acho que passa muito devagar, ainda mais quando estou com fome, mas eles sabem, os adultos já entenderam tudo e se eles dizem que passa rápido eu acredito. E tenho muito medo.

Neste ponto entram os dois extremos da vida: juventude e velhice; o tempo visto por uma criança e o mesmo tempo observado do ponto de vista dos adultos. O mundo ou a vida, na visão desta narradora que se pretende escritora, tem a capacidade de se alargar e desembocar em variantes. Uma delas é a visão original, necessária àqueles que se pretendem à escrita. Às vezes esquecemos que a narrativa sai das mãos de uma pessoa adulta que se finge criança, tamanho é o mergulho no universo de Maria Carmem. Trata-se da literatura com seus artifícios.

Tudo vai bem, ou melhor, nada vai bem — caso se aprofundem a discussão existencial e a empresarial (porque a loja faz parte da vida dos pais da menina e dela própria), até que entra na história um terceiro personagem, alguém com Pós-graduação em Gerontologia Interativa, Gestão Gerontológica, Marketing Gerontológico, Design Gerontológico, que aparece numa entrevista na TV. Maria Carmem entra em contato com ele. Quem sabe será alguém a trazer a solução para a loja de produtos para idosos, sempre deficitária? O surgimento de Leonardo, o profissional, é o ponto de partida para uma espécie de ruptura, ou de reversão das expectativas.

Nó literário

Uma obra literária precisa ter um problema, um nó que surge durante a narrativa e precisa ser desfeito. Mas sabemos de antemão que, no romance contemporâneo, mesmo desfeito o tal nó não se sai impune. Isso vai acontecer de um determinado trecho do livro em diante. As pessoas, no que todos somos espectadores, contentam-se em lamentar o sofrimento alheio, mas não são capazes de conviver por muito tempo com a felicidade alheia. Não que o tal personagem venha ser o portador de uma felicidade total ou de soluções para todos os problemas da família (aqui é preciso ressaltar o ponto de vista da narradora-menina), entretanto é alguém que, sobretudo em tempos sombrios como os atuais, passará a incomodar, principalmente os mais conservadores. Daqui para frente, cabe a cada um tomar o livro nas mãos e seguir o fio da narrativa.

Não se pode exigir que a literatura cumpra preceitos morais. Uma coisa é a ética; outra, a estética. Ao discutir esta última, Kant, apesar de ser um pastor calvinista, soube distinguir que o belo retratado sobretudo pela arte não poderia estar subjugado a qualquer tipo de doutrina. A beleza não deixa de ser uma questão ideológica, é claro, com apoiadores e detratores, mas se tornará vencedora como conceito não devido a algum tipo de beleza original, pura ou primordial, mas devido ao lado para onde a maioria pende. Ainda assim preceitos não tão explícitos permeariam a vida de cada um, às vezes de um modo contestador, outras de modo pacificador. A ressaca, no entanto, quase sempre pende ao trágico. Apesar do consenso, quase sempre artificial, o conceito de beleza é passível de mudança.

Assim caminha a humanidade, e também o livro. A opção de vida que os pais de Maria Carmem vão adotar terá a aparência temerária para muitos; em determinados pontos da narrativa chegaremos a pensar: uma coisa dessa não pode dar certo. Mas não nos cabe julgar nem depreciar. Nem a escola, local onde a menina estuda.

Fato importante no romance é o caráter metalinguístico, isto é, trata-se de uma narrativa que fala sobre literatura. Durante grande parte da história a menina diz que um dia vai ser escritora. Naquele momento ainda não o é, mas escreve um livro para si mesma. O livro avança e é arquivado nos recantos mais profundos do computador familiar, até que um dos pais descobre a narrativa e fica horrorizado. Mas o que a menina conta nada mais é do que a história da própria família. No início pensam em destruir o manuscrito (se é que se pode chamá-lo assim), deletá-lo para todo o sempre. Mas como? Seria deletar a própria vida dos habitantes daquela casa, seria apagar suas existências, e isso, mesmo sem o livro, não poderia ser apagado. É a hora de um personagem dizer: “Nunca se apaga nada assim [...] E porque a gente prefere que você exista”. Além de a menina sempre pensar que ninguém se importava com ela, sabemos que sem o texto o escritor morre.

A discussão do que é uma família, de como ela pode se amalgamar, qual o seu papel na sociedade — há necessidade mesmo de algum papel? —, a relação com uma amiga do prédio, as reações de seus colegas de classe e, consequentemente, dos pais, tudo aqui corre direto no viés do tempo, do tempo que Maria Carmem diz que durou um milhão de anos.

Um dos aspectos da literatura contemporânea é ela não caber em si mesma. Ou, um dado a mais, que não tenha nenhum glamour. Um dia desses uma famosa escritora francesa, numa entrevista à TV, disse que escrever não tem glamour algum. A menina percebeu isso desde cedo, pois no final imagina sua história adaptada para o cinema, cria até o movimento de câmera que fecha o filme. Cinema e literatura podem ser vistos como críticas à própria escrita — já que muitos autores escrevem objetivando a cultura de massa. Talvez outra crítica seria ao excesso de imagens (vide Netflix e congêneres) que povoam agora nossas vidas. O melhor, então, seria reafirmar a leitura e a literatura. Todos com seus livros nas mãos a bisbilhotar a vida alheia através das palavras, assim seria mais fácil discutir a trama com um amigo, mais simples para cada um compreender a história a seu modo, além de nos livrarmos daquela montoeira de créditos no final da projeção. Além disso, dias depois, num café ou no escritório, nos pouparíamos dos comentários de gente pouco entendida em Homero, Dante ou Dostoiévski. Isso sem querer desmerecer a sétima arte.

© 2020 Rascunho.
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