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“De pazes” com Curitiba
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Em 1992, por ocasião dos festejos antecipados dos 300 anos de Curitiba, o escritor Dalton Trevisan escreveu um texto para celebrar a efeméride: Curitiba Revisitada. Encomendado ao autor pela Gazeta do Povo, o poema não era nada do que os editores esperavam. Incluído no livro Em Busca da Curitiba Perdida, o texto foi republicado pela revista Veja, numa matéria que celebrava a cidade de então como “um Brasil viável.”

Curitiba Revisitada, contudo, não celebrava a cidade. O conto/poema atacava a Curitiba do tempo em que Jaime Lerner & Cia. tentavam construir algo que fosse além da eterna província do Primeiro Planalto. Era a época das grandes obras que hoje atraem turistas do Brasil inteiro, como a Ópera de Arame e o Jardim Botânico. Era a Curitiba que tinha um sistema de transporte público de causar inveja ao restante do país. Era a cidade que apareceu numa pesquisa da ONU como “a terceira melhor cidade do mundo para se viver” (atrás de Roma e San Francisco).

E, justamente por isso, era uma cidade em conflito. De um lado, estavam os saudosistas, como o próprio Trevisan, que queriam preservar a Curitiba Mítica de suas infâncias e juventudes. De outro, estavam os que queriam uma cidade moderna, próspera, tão cosmopolita quanto possível para uma cidade ao sul do Trópico de Capricórnio.

Passados vinte e seis anos, não há dúvidas quanto a quem ganhou a disputa. Se a Curitiba Mítica resiste — e resiste —, é apenas em bolsões localizados, em poucas casas que mantêm o lambrequim e o criadouro de aranhas-marrons e, claro, no sotaque carregado de quem enche a boca para falar “leite quente dá dor de dente.”

A revolta nostálgica de Dalton Trevisan tinha lá sua graça e, se você procurar bem, até beleza. Mas também tinha algo de ridículo. O passado idealizado e o clamor pela manutenção da paisagem que os olhos infantis viam têm em si algo de patológico. Embora às vezes se abata sobre todos nós um cansaço e ainda que de vez em quando nos espantemos com a velocidade das coisas, inclusive do tempo (já é quase Páscoa?!), não, o mundo (e a Curitiba) de ontem não era necessariamente melhor do que o mundo de hoje.

Por isso achei que estava mais do que na hora de revisitar a Curitiba Revisitada de Dalton Trevisan e de tentar fazer as pazes com a Curitiba real e moderna, daqueles que se orgulham de ser curitibocas, das pessoas que até dão bom dia na fila do açougue, do transporte público antes modelo e hoje falido, das polaquinhas cheias de tatuagens, das multidões de turistas boquiabertos diante da Ópera de Arame e do sotaque marcante que ri de si mesmo.

Você pode até recorrer de vez em quando ao passado idealizado como uma espécie de esconderijo da alma. Você pode torcer o nariz para as mudanças. Você pode questionar a estética arquitetônica que insiste na combinação de aço e vidro. Você pode (e até deve) se escandalizar com a violência cotidiana da metrópole.

O que você não pode é se recusar a enxergar a realidade só porque dela discorda.

Curitiba revisitada revisitada

Por Paulo Polzonoff Jr.

Que bom fim ó caras vocês deram à minha cidade
a outra de ruas de barro valetas expostas gente ensimesmada
ó Senhor de chatos que não se enxergavam
umas tristes velhinhas cuidando da vida alheia
nada heroicas nada santas nada pobres velhinhas
todas tísicas desesperançadas a berruga uma mágoa exposta
todas o rancor guardado
que bom fim levaram
do que me livraram?

uma cidade boa pra quem sabe
tão melhor que chova tanto assim
chuva de granizo em dia quente roupa molhada
a alma deliciosamente encharcada
no calçadão onde pulula vida na foto colorida
um e outro passo muamba dois por três
esfria espirro risada vacina canja cuidado
o sol tímido se insinua por trás da serra e não há quem não goste

a melhor cidade da galáxia do Universo pra viver
certamente depois de Roma
segundo meu desejo minha teimosa
meu querer é soberano estou vivo
sou curitiboca que ri orgulhoso
da possibilidade de ir embora e não ir
seduzido por meia dúzia de pinhões em noite fria

lei não falta na cidade tumultuada
capital mundial das periquitas obcecadas por multas
santuário dos pardais fotográficos da ordem imposta
mas deixe estar que a via é calma

a melhor de todas as cidades possíveis
toda noite você puxa um cobertorzinho
Curitiba europeia do primeiro mundo
Meu avô veio da Rússia o teu da Itália
Curitiba alegre do povo feliz
essa é a nova cidade não adianta a birra anciã
tudo mundo que tem olhos de ver vê

não adianta espernear culpar político
na ópera os homens as mulheres se embasbacam
tudo é muito limpo, muito lindo, foto & foto
povo felicíssimo lambrequim café leite quente e pão
dessa Curitiba até que me ufano
sim Curitiba sim é uma festa
a ira morreu e agora desfila alegre entre zumbis

só o tolo não vê a esperança que ronda os mascarados no Hospital de Clínicas
das torneiras jorra água não importa a cor
a menina não mais atende o telefone manda mensagem
ali na rua o exibicionista medicado se contém
em cada janela pessoas vivendo a vida pequena
batem na porta é a só pizza
na praça a mulher escolhe calzone ou pierogue
tua mulher sobe no ônibus vai com Deus!
tua filha não para na esquina tem mais o que fazer
quando muito está perdida, assustada
pede ajuda a um, a outro policial
medo só tem quem se esconde na nostalgia

um ipê amarelo, roxo, dez araucárias por pessoa
que só não servem
para quem anda cabisbaixo, ensimesmado na ruína

até os irmãos universalistas
com suas cúpulas cafonas douradas imensas
os irmãos que choram por dinheiro
e na Rua Parnaíba
se enfileiram os miseráveis para o café das caridosas freiras
pedem uma esmolinha
fazem temer os já temerosos
saem por aí assobiando uma canção triste

ai da cólera que espuma os teus narcisistas
criam para si um passado natimorto e idealizado
suprindo de vez a realidade
esfregada na cara de quem insiste no erro
que xinga porque lhe falta
em cada esquina um fato incontornável impossível de ignorar
não mais o bonde o silêncio o isolamento no planalto

não me venha com melancolia nostálgica senil
você que achava linda a rotina dos colonos
o criadouro de aranha-marrom nas frestas da madeira podre
ah, a paz do banheirinho afastado da casa
cada passo pela rua enlameada uma lembrança da aldeia
e os matos cheios de mamona os sapos as enchentes da infância
a isso chama de “naquele tempo que era bom”

te conheço melhor assim Curitiba a mim me conheço
somos todos outros outro tempo
platônica é a saudade muito real é o cotidiano
as nuvens baixas do primeiro planalto já não mais confinam
admiro o entorno: não há como fugir
as vassouras de piaçava dos teus bares são falsas – e daí?
turistas do Boqueirão, domingueiros diletantes neófitos
embasbacados orgulhosos vaidosos do que não são
do que se julgam

vira-latas que agora ganham nome em inglês
todos castrados sem pulgas
as gatas no cio miam contidas pra não incomodar
todas têm microchip nome irônico Instagram
não temem mais a maldita fábrica de sabão
nem as pedradas as maldades dos maloqueiros
todos de uniforme impecavelmente passado
livro embaixo do braço, tem que ser alguém na vida
frase motivacional bordada na camiseta

não me venha com a Curitiba mítica carrancuda e nublada
o acrílico azul futurista que virou passado
a outra reconheço, triste:
tiro porrada bomba incêndio revolta na comunidade
arrastão no azulão
a molecada bêbada trans em volta do Cavalo Babão
os hipsters cabelo pega-rapaz bebendo gin na Saldanha
os revolucionários hippies sabem-tudo na Santos Andrade
o jazzista historiador improvisando um som às três da manhã

não me deixo abater pelas cem mil tragédias incontornáveis
só o que vejo é promessa e esperança
de que um dia deixe de ser província mal-humorada
cinza? quero
antes cinza melancólica do que o eterno enlutado
pelo pretérito de chita a embalar seus sonhos

por favor, me dê a mão!
adoro quando me dão a mão
esse abraço caloroso e muito vivo
adoro sentir um coração batendo contra o meu
amo a palavra sinceramente sussurrada
cedo humildemente aos encantos das tuas esquinas e histórias
mesmo que falsas, ainda bem que falsas, mesmo as que não combinam

essa cidade é também a minha
nascido na Vicente Machado
o leite quente perdido o tê que estala na boca

o que resta da Curitiba d’antanho
o calor tropical que a origem europeia insiste em negar
os muitos joões-de-barro e bem-te-vis teimosos na manhã fria
aqui é sempre mais frio do que qualquer lugar frio
a repórter que mostra a geada sobre o fusca 67
o penal o lazarento o maloqueiro a cueca-virada
o sorriso do piá diante do carro do sonho que está passando, freguesia

os vivos muito vivos
a Rua 15 cheinha de gente viva
os pontos de ônibus e a prainha da Itupava entupidos de gente viva
ais e risos de gente viva
ignorando o sobrevivente que é apenas zumbi na ruína da esquina
Curitiba que deixou de ser polaquinha pra virar mulher
Curitiba que é e continuará sendo

(a despeito de nós mesmos)

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