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| Foto: Jessica Maes/Gazeta do Povo

O ar vibra na Horta Comunitária Santa Rita IV - e não é figura de linguagem. Isso aconteceu porque as hortaliças foram plantadas sob uma linha de transmissão de energia da Eletrosul que atravessa o bairro Tatuquara, na região Sul de Curitiba. Circulando em meio aos canteiros é inevitável ouvir o zumbido que vem dos cabos de alta tensão e fica até difícil acreditar que, antes da chegada dos horteiros, o terreno costumava estar cheio de entulho.

Uma das responsáveis por dar um jeito nessa situação e fazer o local virar exemplo de aproveitamento de espaço urbano ocioso foi Lenita Ferreira Bueno, coordenadora da horta desde as primeiras sementes, há quase oito anos. A vida de horteira começou em outras plantações, na comunidade Santa Cecília, também no Tatuquara, até que ela resolveu organizar uma horta mais perto de casa, na própria Santa Rita. Ela conta que foram três anos de espera por uma verba do Ministério do Desenvolvimento Social (criado em 2004 e atualmente absorvido pelo Ministério da Cidadania) até os trabalhos no local iniciarem.

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O espaço nasceu de uma parceria da comunidade com a prefeitura, que cedeu o terreno, e com a empresa do setor energético, que contribui com verba para compra de mudas e adubo, além de fazer a manutenção e a fiscalização das normas de segurança. “Como fica embaixo da torre, tem risco - não pode andar de chinelo, não pode ficar descalço”, enumera a líder comunitária.

Também é preciso saber o que pode ser plantado nos canteiros e o que precisa ir para a lavoura, além de ser proibido usar qualquer tipo de agrotóxico. “A gente não pode colocar nada químico. Se a gente descobrir que alguém colocou alguma coisa química, [a pessoa] sai fora”, garante dona Lenita, que acaba sendo umas das responsáveis por ficar de olho no cumprimento das regras. A assistência técnica fica por conta da Secretaria Municipal de Abastecimento, pasta que cuida da segurança alimentar das 27 hortas comunitárias da capital.

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Especialmente em um estado com um histórico tão rural e de imigração tão intensa quanto o Paraná, a agricultura urbana acaba resgatando hábitos que se diluíram com o movimento de êxodo rural. “Cada descendência traz, devido a sua alimentação, a prática de cultivar algum tipo de tempero - como os italianos, com o manjericão”, aponta a agrônoma Márcia Marzagão, professora do Departamento de Solos da Universidade Federal do Paraná (UFPR). As possibilidades de cultivo, obviamente, são muitas: vão dos temperos (como alecrim, salsinha e cebolinha), passam pelas verduras (como alface, couve e rúcula), e chegam aos legumes (como cenoura, tomate e abobrinha).

Sustentação legal

Apesar de não ser uma atividade nova, só agora a agricultura urbana está recebendo respaldo em forma de lei. Após um histórico de disputas entre cidadãos e órgãos oficiais, a lei municipal nº 15.300/2018 foi aprovada pela Câmara de Vereadores e sancionada pelo prefeito Rafael Greca em outubro passado. Proposto pelo vereador Goura (PDT), o texto oficializa a autorização da ocupação de espaços públicos e privados para o desenvolvimento de atividades de agricultura urbana.

Ainda carente de regulamentação, a lei protege as práticas voltadas a processos de segurança e soberania alimentar, manutenção da qualidade de vida e democratização de espaços. As hortas, jardins e espaços de silvicultura podem servir tanto para o abastecimento quanto para a educação da população.

Jessica Maes/Gazeta do Povo

“Temos uma equipe trabalhando na regulamentação da lei, para estabelecer uma série de parâmetros, desde urbanísticos até pensar em formas para deixar que esses espaços cresçam, incorporando jardins comestíveis ou jardins de mel”, explica o secretário municipal do Abastecimento, Luiz Gusi. Ele acredita que a redação final do regulamento deve ficar pronta em cerca de 60 dias.

Atividade multifacetada

Engenheiro agrônomo, Gusi destaca o papel da agroecologia urbana na educação e organização social. “A horta é uma grande ferramenta para trabalhar a segurança alimentar, a educação ambiental, a mobilização social, os aspectos de vizinhança”.

Por definição, a agroecologia urbana é a agricultura sem agrotóxicos realizada em ambiente urbano. Para professora da UFPR, a atividade é mais do que um modo de produção: é uma ferramenta de transformação social. “Ela trabalha em diferentes eixos - econômico, ambiental, cultural e social - preservando saberes das agriculturas tradicionais e fazendo troca desses saberes”, explica.

A pesquisadora lembra que a multiplicação de áreas verdes nas cidades contribui para a diminuição do efeito estufa, amenizando as altas temperaturas presentes em áreas com grande cobertura de asfalto. Também é possível aliar as hortas à redução do lixo, transformando resíduos orgânicos em adubo. “Produzir o adubo pode fazer com que aquela atividade reverta um benefício e uma economia para o estado”, acrescenta Márcia.

De acordo com Gusi, 3% da área de Curitiba é ocupada por atividades rurais, tanto de plantio quanto de criação de animais. Ao todo, 89 hortas têm algum tipo de parceria com a prefeitura. Destas, 42 funcionam em escolas municipais; 20 são institucionais e estão localizadas junto a Centro de Referência de Assistência Social (Cras), Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), unidades de saúde e organizações não governamentais; e 27 são comunitárias urbanas.

“As pessoas hoje que cultivam nas hortas comunitárias normalmente são aposentados, que procuram a atividade como forma de lazer e para aproveitar uma área que estava abandonada, tinha lixo e oferecia riscos”, diz o secretário. Dona de casa, Lenita conta que a horta mudou a convivência no bairro. “Eu moro aqui há 24 anos, mas tinha muita gente que eu só conhecia de ver no ônibus. A amizade mesmo, de conviver, nasceu aqui”.

Segundo o relatório “Estado do mundo - Inovações que nutrem o planeta”, publicado em 2011 pela instituição de pesquisa global Worldwatch Institute, estima-se que 800 milhões de pessoas no planeta se dedicam à agricultura urbana. Isso corresponde a uma parcela de 15% a 20% de todo o alimento consumido. Um quarto destes agricultores urbanos produzem alimentos para vender nos mercados e empregam outras 150 milhões de pessoas.

Questão de saúde

Há diversas evidências dos benefícios das hortas urbanas para a qualidade de vida dos horteiros. No projeto de extensão Agroecologia Urbana, da UFPR, Márcia percebeu, como coordenadora do projeto, o ganho terapêutico que a atividade traz. “Muitas vezes [os horteiros] são pessoas idosas, que já estão à margem [da sociedade], que vieram do campo e tinham essa prática. Então, por meio dessa agricultura elas tomam sol, fazem exercício, se movimentam”, conta.

Cansada das atribuições como coordenadora da Santa Rita IV, Lenita conta que a horta consome tempo e energia - é muita gente para puxar a orelha e burocracia demais para o seu gosto. Mesmo com o estresse, ela não consegue abrir mão da atividade. “A horta é bem importante, porque as pessoas gostam muito”, afirma a produtora, acrescentando que o espaço ajuda vizinhos que sofrem de depressão. “Tem uma mulher que ficou até internada em hospital [psiquiátrico], tomava remédio pesado. Hoje ela está na horta e está bem, feliz”.

Obviamente, entram na conta de vantagens os próprios vegetais que são produzidos nesses espaços. “As pessoas colhem esses frutos e acabam se alimentando, em uma parcela, de algo sem agrotóxico e sem pagar mais caro por isso”, aponta a agrônoma. A utilização de agrotóxicos em perímetro urbano é proibida no Brasil.

Há dez anos, o país é campeão em consumo de defensivos agrícolas no mundo todo e, segundo estimativas da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), cada brasileiro consome por ano, em média, 7,3 litros de agrotóxicos. Em 2015, o Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (Inca), órgão do Ministério da Saúde, se posicionou oficialmente pela primeira vez contra o uso destes produtos, destacando a ligação deles com danos à saúde, especialmente o desenvolvimento de câncer.

Do bairro para os restaurantes

Na Horta Comunitária Santa Rita IV, alguns canteiros, marcados com uma estaca colorida, têm uma variedade de produtos bem maior do que outros. Eles pertencem aos horteiros que, como Lenita, participam do projeto Horta do Chef. Lançada em 2017 pela prefeitura de Curitiba, a iniciativa incentiva os produtores a venderem parte da colheita para restaurantes renomados da capital. Quem recolhe os alimentos são os próprios chefs e a lista é estrelada, contando com nomes como Manu Buffara, Igor Marquesini e Lênin Palhano.

A líder comunitária conta que as mudas compradas pela prefeitura com a verba da Eletrosul são as mais comuns - alface, cebolinha, salsinha, repolho. “As outras coisas diferentes que a gente compra é tudo com o dinheiro ‘Do Chef’”, explica. Os lucros provenientes do projeto não são substanciais a ponto de mudar a vida dos produtores, mas são o suficiente gerar uma economia circular, sendo reinvestidos na horta, diversificando a produção e gerando excedentes que podem ser comercializados livremente.

A parceria colocou no repertório dos horteiros plantas e usos que eram, até então, desconhecidos. São as plantas alimentícias não convencionais (Pancs). A flor do coentro, que era jogada fora, vai para os pratos dos restaurantes renomados. Assim como a azedinha - a mesma que quem teve a infância no interior provavelmente comia enquanto estava brincando no meio do mato - e a ora-pro-nóbis - a “carne dos pobres”, de alto valor proteico. Também entraram nos canteiros as flores comestíveis e o peixinho-da-horta - que recebe esse nome porque, empanado e frito, fica com gosto de peixe.

“O que mais me interessa é poder desenvolver uma alimentação melhor para as pessoas que moram perto da horta, fazer uma troca com a comunidade”, afirma Manu Buffara, que procura desenvolver atividades para mudar a relação dessas pessoas com os alimentos. Na mesa da família Ferreira Bueno, os anos de vivência na horta trouxeram mudanças. “A gente come muito mais saudável. Dá para sentir a diferença de comer uma alface daqui e uma alface do mercado”, garante Lenita.

Gusi ressalta que, na agroecologia, o foco não é na produtividade, como acontece na agricultura convencional. “A lógica da agricultura urbana é produzir para aumentar a presença de hortaliças na dieta da casa, então é uma produção bem diversificada. O objetivo é complementar a sua pauta alimentar e com a vinda dos chefs esse olhar é diferente.”

“A gente precisa transformar as comunidades através do alimento, do produto, da terra. Mas a gente também tem que pensar em como passar isso para frente para esse conhecimento não se perca. Então temos que informar e educar”, defende Manu. O potencial transformador do projeto foi reconhecido mundialmente em novembro passado, quando o Horta do Chef foi um dos seis finalistas do World Smart City Awards, prêmio internacional de cidades inteligentes.

“Eu espero que a agroecologia urbana traga mais à tona esse debate da boa alimentação, da importância das pessoas estarem mais próximas do seu alimento, [de saber] como produz, como chega à tua mesa, de ter esse cuidado com o agricultor”, declara Márcia Marzagão. Atualmente, 70% dos alimentos que são consumidos no Brasil são provenientes da agricultura familiar, segundo dados de 2017 do governo federal. São 4,4 milhões de propriedades, que representam 84,4% do total dos estabelecimentos agropecuários do país.

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