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Fábrica da Honda no Brasil
Fábrica da Honda em São Paulo: montadora decidiu deixar de produzir automóveis na Argentina. Brasil é um dos países que pode receber a demanda.| Foto: Divulgação/Honda

A notícia de que empresas multinacionais estariam trocando a Argentina pelo Brasil, por causa da eleição de Alberto Fernández para presidente no país vizinho, provocou especulações sobre o que seria uma “debandada” do setor produtivo em terras argentinas.

Os casos já anunciados, entretanto, apontam que, na verdade, os movimentos são pontuais, e não constituem uma “migração em massa” de empresas para o Brasil – ao menos por enquanto. Os indicativos, ao contrário, são de que as mudanças dizem respeito a novas estratégias das empresas envolvidas, a maioria ligada ao setor automotivo.

Até agora, são três as grandes companhias que anunciaram a transferência de ao menos parte de suas operações para o Brasil: a alemã Basf e a norte-americana Axalta, ambas do segmento de tinta e resina para automóveis; e a francesa Saint-Gobain Sekurit, que fabrica vidros de para-brisa para veículos.

A montadora japonesa Honda, por sua vez, anunciou que deixará de produzir automóveis na Argentina, mas não definiu ainda para onde irá transferir essa fábrica.

Fora do setor automotivo, a Latam fechou sua subsidiária argentina em junho. O caso da companhia aérea, entretanto, é diferente dos demais: a Latam enfrenta dificuldades em outros países em que opera, por causa da pandemia do novo coronavírus. A subsidiária da Latam no Brasil também está com problemas, e entrou no processo de recuperação judicial da companhia nos EUA. Na Argentina, o fechamento veio depois de anos de crise, agravados pelo subsídio estatal à Aerolíneas Argentinas.

Transferência da produção para o Brasil não implicou fechamento na Argentina, dizem empresas

Entre as três empresas que decidiram transferir parte das operações para o Brasil, além disso, apenas a Axalta afirma ter decidido, de fato, encerrar suas operações na Argentina. Em nota enviada à Gazeta do Povo, a empresa afirma que “se viu forçada” a deixar o país “por conta da situação econômica e do impacto causado pela Covid-19”. A planta da Axalta na Argentina ficava em Escobar, cidade a 50 quilômetros de Buenos Aires, e empregava 100 funcionários.

Nos outros casos, porém, as empresas transferiram parte de suas operações para o Brasil – mas, ainda assim, mantiveram atividade em território argentino. A Saint-Gobain Sekurit, que produz para-brisas e atendia às montadoras Chevrolet e Renault em solo argentino, afirmou, também em nota encaminhada à Gazeta do Povo, que a transferência da produção para o Brasil é temporária.

De acordo com o texto, os ativos industriais da empresa na Argentina foram mantidos, “na expectativa de uma possível retomada do mercado”. “Essa medida foi necessária para garantir a sustentabilidade da operação. A empresa permanece atuando no país, atendendo ao mercado de reposição. (...) A Sekurit garante a continuidade das operações na Argentina, mantendo as atividades da unidade localizada em Tortuguitas, bem como seu compromisso com o mercado local”, completa a nota.

O fechamento da fábrica da Saint-Gobain Sekurit em Córdoba envolveu um plano de demissão voluntária de 150 funcionários, segundo noticiou o jornal argentino Clarín. A empresa mantém, ainda, um armazém na cidade de Tortuguitas (a 40 quilômetros de Buenos Aires) e um distribuidor em Córdoba, que seguem em atividade.

De forma semelhante, a alemã Basf redesenhou suas operações e anunciou que irá transferir a produção de tinta para carros da fábrica em Tortuguitas para São Bernardo do Campo, em São Paulo, no segundo semestre de 2021.

De acordo com o que disse a companhia ao jornal argentino Clarín, o fechamento da planta em Tortuguitas deve afetar 60 colaboradores – mas toda a estrutura comercial, administrativa e técnica que já existe será mantida em território argentino. Outros produtos da empresa do setor químico, além disso, continuarão a ser fabricados no país.

Segundo apurou o Clarín, a mudança da produção para São Bernardo do Campo está relacionada à capacidade ociosa da estrutura mantida pela Basf no Brasil. “Lá [no Brasil] a empresa é mais competitiva e ninguém tem expectativas de que a demanda volte ao nível registrado há alguns anos, quando o Brasil chegou a produzir quase quatro milhões de veículos [por ano]”, disseram fontes do setor ao periódico argentino.

A Basf não respondeu ao pedido de entrevista enviado pela Gazeta do Povo.

Produção do HR-V, da Honda, ainda não tem destino definido

No caso da Honda, por fim, as alterações já haviam sido anunciadas bem antes da pandemia. Em agosto de 2019, a empresa comunicou que a subsidiária argentina, que até então produzia motocicletas e automóveis, deixaria de produzir os carros do modelo HR-V em 2020. Com isso, a planta localizada em Campana (a 80 quilômetros de Buenos Aires) passou a focar suas operações no segmento de motocicletas.

“Visando fortalecer a estrutura do negócio de automóveis, diante das abruptas mudanças da indústria automotiva ao redor do mundo, a Honda tem buscado reforçar a coordenação e colaboração inter-regional, otimizando a alocação e capacidade produtiva de automóveis globalmente”, dizia o comunicado da empresa, no ano passado. O Brasil é um dos países que pode sediar a produção que ocorria na Argentina, mas a decisão ainda não foi tomada pela montadora.

Questionada sobre os casos, a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) afirmou que não comenta decisões pontuais de companhias ligadas ao setor.

Mercado consumidor brasileiro é atrativo, mas “migração” não é sistemática

Na opinião de Wagner Parente, CEO da BMJ – consultoria especializada em comércio internacional –, um dos fatores que mais influiu na decisão dessas empresas se relaciona à retomada da economia no período pós-pandemia. "Existe uma perspectiva de determinados setores de que a retomada vai ser mais rápida no Brasil por causa do tamanho do mercado consumidor”, explica.

Já Fernando Ribeiro Leite, professor do Insper, aponta para um reposicionamento nas cadeias globais de valores por parte das empresas transnacionais. “A tendência entre as multinacionais é de priorizar cadeias mais concentradas do ponto de vista geográfico. Essas empresas começaram a compreender que a dispersão geográfica vulnerabiliza a cadeia produtiva. Já que o Brasil é um grande produtor de automóveis, faz sentido deixar os insumos aqui”, avalia.

Ambos descartam que o movimento seja, de fato, uma tendência de "fuga em massa" de empresas da Argentina para o Brasil. “Embora a gente possa lembrar que a Argentina reiteradamente teve crises de fuga de capital produtivo, não só capital financeiro, eu não vejo esse movimento acontecendo agora na economia do país”, completa Leite.

Setor automotivo tem regime de comércio próprio entre Brasil e Argentina

Mais um fator que fortalece a tese de que se trata de um fenômeno pontual do setor automotivo se relaciona ao regime de trocas comerciais entre Brasil e Argentina para exportações e importações de produtos dessa cadeia produtiva. O acordo entre os dois países, chamado “flex”, prevê uma proporção entre importações e exportações de carros e autopeças. Até o ano passado, cada dólar importado pelo Brasil da Argentina deveria equivaler a 1,5 dólar de exportação brasileira ao país vizinho.

A revisão dos termos entre os dois países, em setembro do ano passado, estabeleceu o aumento gradativo do índice até que, em 2029, o setor passe a ter livre comércio. Hoje, a proporção está em 1,8 dólar exportado para 1 dólar importado pelo Brasil. A entrada de carros produzidos em indústrias brasileiras no país vizinho acima da proporção vigente, segundo o acordo, resulta em multas para as montadoras.

“O setor automotivo é muito sensível. Esse arranjo do regime flex foi desenvolvido ao longo do tempo e sempre está sendo rediscutido, com o temor de que todas as empresas argentinas venham para o Brasil, por causa do mercado consumidor. Para o Brasil, interessa manter a Argentina forte, porque é o nosso principal parceiro comercial ”, diz Wagner Parente, da BMJ.

Assim, o acordo flex, segundo ele, é mais um elemento que explica a migração das empresas. “Essa integração sempre foi muito delicada. Como [os presidentes Alberto] Fernández e [Jair] Bolsonaro não têm proximidade, cadeias que dependem de integração produtiva, principalmente o setor automotivo, temem que não haja um aprofundamento dos acordos comerciais do Mercosul", completa Parente.

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