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Cylla Alonso e Gabriel Soto, proprietários da Casa em Si.
Cylla Alonso e Gabriel Soto, proprietários da Casa em Si.| Foto: Divulgação

As aulas de flamenco – manifestação cultural da Espanha que une dança e música – são a atividade principal do espaço Casa em Si, de São Paulo. Até o começo de 2020, as salas ficavam cheias de alunos que aprendiam a se movimentar seguindo as coreografias da bailarina Cylla Alonso, acompanhadas do som ao vivo feito pelo músico Gabriel Soto.

A pandemia de coronavírus exigiu a adaptação de todas as aulas para novos formatos: primeiro no meio digital e depois presencialmente, com medidas de distanciamento social. Os obstáculos foram muitos, mas os dois seguem dispostos a manter viva a escola. A ação mais recente ocorreu entre os dias 6 e 11 de setembro, com aulas de “degustação” de flamenco.

Essa história de persistência nos negócios é mais uma da série de reportagens O Brasil que inspira, que traz histórias de coragem e criatividade, de brasileiras e brasileiros que encontraram novas formas de empreender durante a pandemia.

Economia criativa foi um dos setores mais prejudicados pela crise

A Casa em Si se enquadra na chamada economia criativa – um dos setores mais prejudicados pela crise, com perda de 1 milhão de empregados entre 2019 e 2021. Esse campo envolve shows, espetáculos, gastronomia e outras atividades em que a criatividade e o capital intelectual são a base para a produção de bens e serviços.

Cylla, 46 anos, teve formação clássica no balé e chegou a uma companhia de flamenco em 1986. Anos depois, passou a estudar de maneira autodidata e desenvolveu um método para a coreologia flamenca, um sistema de representação gráfica da dança, que passou a aplicar como professora.

Em 1999, formou sua primeira companhia profissional, encerrada sete anos depois, época que coincidiu com um período na Espanha, inicialmente para estudar e depois como professora. Em 2013 ela voltou ao Brasil e, após passar por algumas companhias e assinar vários espetáculos, inaugurou com o sócio a Casa em Si, em 2018.

Gabriel, 45 anos, conhece Cylla desde 2001 e foi parceiro dela em alguns projetos profissionais. Formado em jornalismo, ele decidiu seguir carreira com o flamenco por volta de 1997, ainda na faculdade. Fez aulas particulares no Brasil e depois se mudou para a Espanha para se aperfeiçoar, onde pegou gosto por ensinar. Acabou voltando por motivos pessoais, para ficar perto dos pais.

“Voltei fazendo shows e muita coisa na área pedagógica, onde sempre falo que Cylla é minha maestra. Tudo que aprendi com ela eu aplico, e isso me possibilitou dar muita aula para bailarinos também. São aulas de ritmo, de estrutura de dança, de baile. Explicar para os bailarinos como se dá o diálogo entra a música e a dança no flamenco, que também não é algo tão simples. O músico no flamenco acompanha a dança, e normalmente é o bailarino que rege a orquestra”, explica o músico.

Unindo os conhecimentos acumulados, Cylla e Gabriel abriram o espaço Casa em Si, que também tem salas disponíveis para outras manifestações culturais. “A gente faz questão que a cultura seja agregadora”, diz ela. “O flamenco é uma arte coletiva. O flamenco é uma dança? Não, é uma manifestação artística-cultural que abarca tudo isso. E um dos propósitos de abrir a Casa em Si era oferecer tudo isso para as pessoas”, completa o sócio.

Mas, se no flamenco é a dança que costuma conduzir a música, a chegada do coronavírus e as restrições sanitárias mudaram tudo. Os professores tiveram de se adaptar ao novo contexto – ou, no popular, dançar conforme a música.

Segundo o Observatório Itaú Cultural, o Brasil tinha 5 milhões de empregados em setores criativos em 2019, número que caiu para 4 milhões atualmente – considerando as categorias de música, artes cênicas e visuais, gastronomia, museus, galerias e bibliotecas, editorial, publicidade, audiovisual, serviços de informática, artesanato, arquitetura e design.

Cylla e Gabriel não tinham funcionários, mas a crise mexeu bastante no número de alunos. “Em geral dou bastante aula particular para professor. A questão é que muitos professores quebraram na pandemia, então minhas aulas particulares diminuíram bastante”, observa Cylla.

O desafio de oferecer aula on-line para alunos cansados das telas

A Casa em Si fez várias tentativas para contornar os obstáculos. Cylla conta que já nas primeiras semanas de fechamento começou a dar aulas on-line, como forma de manter a entrada de recursos e pagar as contas. Mas a resistência de alunos foi grande, mesmo entre aqueles que mantiveram o emprego e podiam pagar.

“Nem importava se a gente estava oferecendo uma aula que poderia ser fantástica. Houve resistência dos alunos porque todo mundo estava trabalhando o dia todo on-line, então ter que fazer uma atividade de lazer on-line acabou virou um peso”, relembra.

As aulas de Gabriel demoraram um pouco para serem ofertadas. “Acho que demorei meses para aceitar a situação de que teríamos de esperar para usar o espaço pelo qual batalhamos tanto. Eu pessoalmente era contra a aula on-line, então foi uma reversão total na minha cabeça, adaptar tudo para esse formato”, relata.

A manutenção do espaço, uma casa alugada na Vila Mariana, se tornou justamente um fator motivador para Cylla e Gabriel continuarem as atividades. A garagem da Casa em Si foi transformada em uma “cueva”, que em tradução livre significa caverna e remonta à origem do flamenco.

“As cuevas são ambientes na Andaluzia [região da Espanha] com interiores rochosos, que são pintados de branco, onde em geral existem shows de flamenco. Transformamos a garagem em uma cueva”, explica Cylla.

Ainda em junho de 2020, um relatório da Fundação Getulio Vargas (FGV) sobre os impactos da pandemia no setor de economia criativa apontava que o caminho de recuperação seria longo, considerando que muitas das atividades exigem contato físico para funcionar plenamente.

Música e dança separadas nas aulas presenciais

A Casa em Si voltou a funcionar presencialmente no fim de outubro de 2020, mas férias e os recrudescimentos da pandemia provocaram novos fechamentos e afetaram a retomada.

Ainda há um temor dos alunos, avalia Cylla. Por outro lado, pessoas que sofreram com a pandemia, seja pela infecção por Covid-19 ou por algum tipo de esgotamento mental, passaram a procurar a atividade como forma de terapia.

Para garantir o distanciamento social ainda necessário, a dança e a música estão temporariamente separadas; ou Cylla dá aulas, ou Gabriel.

“Uma das coisas que mais falo para a Cylla é que quero ver essa casa cheia”, diz Gabriel, esperançoso. Ainda não é o retorno financeiro o que os move, e sim a vontade de exercer a profissão para a qual tanto estudaram.

“O que talvez algumas pessoas não entendam é que a gente se aprimora a vida inteira e essa dedicação em crescer na nossa área implica passar isso adiante. É nossa profissão e estamos fazendo a diferença na vida das pessoas”, diz o músico.

A bailarina vai na mesma linha. “O processo de superação dessa crise tem a ver com isso. É o que estudamos para fazer. É nossa profissão, não só o desejo de fazer arte. Seja uma profissão fácil ou difícil, vale a apena batalhar por ela, porque se desistirmos fecharemos o caminho para muita molecada que vem aí e vai perder muita trilha", diz. "Além disso, a gente realmente sente que faz diferença na vida das pessoas, que chegam exaustas, mas saem da aula se sentindo melhor. É por isso que acho que, seja qual for o obstáculo, vale a pena e sempre vai valer.”

Esta é a sétima reportagem da série O Brasil que inspira, que conta histórias de brasileiras e brasileiros que encontraram novas formas de trabalhar e empreender durante a pandemia de coronavírus.

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